Lembrar para evitar!!!
Este imporante artigo do amigo e companheiro Celso Lungaretti deve ser lido por todos, para que não esqueçamos deste triste e trágico período da vida brasileira.Os mais jovens para se informar e previr e os mais velhos para não esquecer e cobrar JUSTIÇA.
COMO ERA VIVER DEBAIXO DAS BOTAS?
Celso Lungaretti (*)
Muitos atos de repúdio à ditadura militar de 1964 estão sendo programados,
no País inteiro, para marcar a passagem dos 43 anos da quartelada, a se
completarem no próximo dia 31. Em São Paulo, a iniciativa é do Fórum dos
Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo e a manifestação
terá lugar a partir das 19 horas do dia 3 de abril, na Câmara Municipal
paulistana (Viaduto Jacareí, 100).
Lembrar o que realmente aconteceu nos anos de chumbo é muito relevante neste
momento em que, aproveitando o esquecimento dos idosos e a desinformação dos
que vieram depois, a direita troglodita tenta reabilitar a imagem da
ditadura, com propaganda enganosa na base do "naquele tempo era tudo
melhor". Nas comunidades políticas do Orkut e em sites como o Terrorismo
Nunca Mais, Mídia Sem Máscara e Usina de Letras, constata-se que essa gente
está bem organizada, tem muitos recursos e vem fazendo intenso proselitismo.
Atua como rolo compressor na internet, fez campanha pelo "não" no plebiscito
sobre o comércio de armas e promove desagravos militares ao notório
torturador Brilhante Ustra (numa tentativa pouco sutil de intimidar a
Justiça). É a serpente se engendrando no ovo.
Eu tinha 13 anos quando os milicos deram o golpe. Depois, como militante
estudantil a partir dos 16 anos, li e absorvi muita informação sobre esse
assunto. E, ao ingressar na Vanguarda Popular Revolucionária, passei a
conviver com pessoas que tiveram participação importante nos eventos de
1964. Curioso (já tinha espírito de jornalista), conversei muito com elas
sobre o que haviam vivido e presenciado.
Depois, em 1989, atuando na imprensa, fui incumbido pela Agência Estado de
preparar uma série de matérias históricas sobre a quartelada, que estava
completando 25 anos. Pesquisei, revirei arquivos, li brazilianistas,
entrevistei personagens.
De tudo isso extraí algumas conclusões, que exponho como tópicos:
* há controvérsias sobre se a articulação da UDN com setores das Forças
Armadas para derrubar o presidente Getúlio em 1954 desembocaria numa
ditadura, caso o suicídio e a carta de Vargas não tivessem virado o jogo;
* mas, é incontestável que militares vinham tentando tomar o poder sob
pretextos anticomunistas desde fevereiro de 1956, duas semanas após a posse
de JK, com a revolta de Jacareacanga. Os oficiais da FAB repetiram a dose em
outubro de 1959, com a também fracassada revolta de Aragarças. E, em agosto
de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as Forças Armadas vetaram a
posse do vice-presidente João Goulart, só voltando atrás diante da
resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do apoio por ele recebido do
comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma guerra civil;
* apesar das bravatas de Luiz Carlos Prestes e dos "grupos dos 11"
brizolistas, não havia em 1964 uma possibilidade real de conquista do poder
pela esquerda. Não existiu o tal "contragolpe preventivo", mas, pura e
simplesmente, um golpe para usurpar o poder, derrubando um governo eleito,
fechando o Congresso, cassando mandatos legítimos e extinguindo entidades da
sociedade civil;
* a esquerda só voltou para valer às ruas em 1968, mas as manifestações de
massa foram respondidas pelo uso cada vez mais brutal da força, por parte de
instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que atuavam sem freios
de nenhuma espécie, promovendo atentados e intimidações. Até que, com a
edição do AI-5, em dezembro de 1968, a resistência pacífica se tornou
inviável. Foi quando a vanguarda armada, insignificante até então, ascendeu
ao primeiro plano, acolhendo os militantes que antes se dedicavam aos
movimentos de massa;
* as organizações guerrilheiras conseguiram surpreender a ditadura no 1º
semestre de 1969, mas já no 2º semestre as Forças Armadas começaram a levar
vantagem no plano militar, introduzindo novos métodos repressivos e
maximizando a prática da tortura, a partir de lições recebidas de oficiais
estadunidenses;
* em 1970 os militares assumiram a dianteira também no plano político,
aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do tricampeonato
mundial de futebol, que lhes trouxeram o apoio da classe média;
* nos anos seguintes, com a guerrilha nos estertores, as Forças Armadas
partiram para o extermínio sistemático dos militantes, que eram capturados
com vida e depois executados;
* o "milagre brasileiro", fruto da reorganização econômica empreendida pelos
ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, bem como de uma
enxurrada de investimentos estadunidenses em 1970 (quando aqui entraram
tantos dólares quanto nos 10 anos anteriores somados), teve vida curta e em
1974 a maré já virou, ficando muitas contas para as gerações seguintes
pagarem;
* corrupção, havia tanta quanto agora, mas a imprensa era impedida de
noticiar o que acontecia, p. ex., nos projetos faraônicos como a
Transamazônica, Ferrovia do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos dos quais
malograram);
* a arrogância e impunidade com que agiam as forças de segurança causou
muitas vítimas inocentes, cujas famílias nem sequer obtinham o
reconhecimento da culpa do Estado e respectiva indenização. E integrantes
dos efetivos policiais chegavam a acumpliciar-se com traficantes, executando
seus rivais a pretexto de justiçar bandidos (Esquadrões da Morte);
* o aparato repressivo criado para combater a guerrilha propiciava a seus
integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só recebiam dos empresários
fascistas vultosas recompensas por cada revolucionário preso ou morto, como
se apossavam de tudo que encontravam de valor com eles. Acostumaram-se a um
padrão de vida muito superior ao que o soldo lhes proporcionaria;
* daí terem resistido encarniçadamente à disposição do presidente Geisel de
desmontar essa engrenagem de terrorismo de estado, no momento em que ela se
tornou desnecessária. Mataram pessoas inofensivas como Vladimir Herzog,
promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o do
Riocentro, que, se não tivesse falhado, provocaria um morticínio em larga
escala) e chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a
destituir sucessivamente o comandante do II Exército e o próprio ministro do
Exército.
Em suma: é o último filme do mundo a merecer reprise. Com todos os seus
defeitos e mares de lama, a democracia ainda é menos pior. Deve ser
preservada, custe o que custar. E, claro, moralizada e aperfeiçoada.
* Celso Lungaretti é jornalista, ex-preso político escritor. Mais artigos em
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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