JAIME SAUTCHUK*
Revirar os porões da ditadura militar não é um anseio apenas
de familiares de mortos e desaparecidos ou de agremiações políticas. Virou um
clamor do povo brasileiro. E, pelo que se pode deduzir de ações práticas, já é
também um pleito dos militares das três forças armadas, que acham de bom tom
retirar os ossos desse soturno baú.
A
ação das comissões da verdade e a ampla divulgação de atrocidades cometidas
durante o regime militar, na descomeração do 50º aniversário do golpe de 1964,
causam forte impacto. A oficialidade que hoje está nos postos de comando nas
três forças armadas, na sua esmagadora maioria, não teve participação alguma no
regime que vigorou até 1985.
No
entanto, é inevitável a vinculação das fardas e estrelas aos eventos e
atrocidades apontadas na mídia convencional, nas redes sociais da net, nas
escolas, praças e auditórios. Assim, cresce muito, de modo sensível, a posição
de que não é justo macular a imagem dessas instituições por conta do que
classificam como erros ou excessos do passado.
Afinal,
argumentam, golpes de Estado sempre estiveram presentes na história do Brasil.
A própria Independência da ex-colônia portuguesa não foi fruto de revolução
popular, mas de um golpe da própria família real. E o mesmo ocorreu na
derrubada de D. Pedro II e do Império, com a proclamação da República que até
hoje vigora.
Contudo,
nossa gente se acostumou a relacionar a palavra golpe com ações militares.
Desde a velha República até o mais dramático dos golpes, que implantou o regime
militar em 1964, o substantivo “golpismo” e o adjetivo “golpista” pareciam
fazer parte de algum dicionário exclusivo da caserna.
Este,
contudo, é um grande equívoco. Militar nenhum faz golpe se não contar com o
apoio político de setores da sociedade. Em nosso caso, a maior parte das elites
sempre foi merecedora do adjetivo, porser adepta do golpismo, com ou sem
militares. Basta que seus interesses sejam ameaçados para que a democracia
esmoreça.
Usam
e abusam das instituições estabelecidas, sejam parlamentos ou instâncias
judiciárias. E contam com as poderosas armas dos meios de comunicação de massa
por elas controlados. Com estes, manipulam grande parte da opinião pública, que
passa a respaldar ações rasteiras, desleais e, é claro, elitistas.
Com
isso, ao longo dos séculos o golpismo passou a fazer parte da vida das pessoas
comuns. Virou parte da cultura nacional. Seja de maneira subliminar, seja de
forma escancarada, os conceitos éticos da lealdade e da solidariedade humana
perdem com frequência seu sentido, parecem coisa de filósofo grego.
Para
termos uma visão clara de como esse processo acontece, podemos usar o exemplo
da grande mídia. O tratamento por essa dado a um tema qualquer tem sempre dois
pesos e duas medidas, aplicados sob o comando do pensamento das elites, que
podem estar aqui, em solo tropical, ou nos Estados Unidos. Tanto faz.
No
mais das vezes, a interferência é direta dos controladores ou donos dessa mídia
e pode ser percebida no próprio vocabulário por ela utilizado. Um exemplo do
Oriente Médio: o rei da Arábia Saudita é chefe de estado, já o presidente da
Síria é ditador. A explicação para esse tratamento diferenciado é simples: o
primeiro é alinhado com as políticas de Washington; o outro, não.
Todos nós sabemos que, durante a ditadura, boa parte da
grande mídia brasileira era editada pelo Palácio do Planalto. Em todos os
governos. Mas, a relação de jornalistas com o chefe da
Casa Civil do general Ernesto Geisel, o também general Golbery do Couto e
Silva, chegava a ser promíscua. Poderia citar nomes de jornalistas da grande
mídia que mandavam textos pra Golbery ler, antes de publicá-los.
Mas isso não é privilégio da ditadura. Durante os governos de
FHC, ocorria algo parecido. A linha editorial de muitos veículos e de muitos
jornalistas era ditada pelo próprio FHC e por outras lideranças tucanas, em
especial José Serra. Essa influência não terminou com o fim do reinado tucano,
de modo que muitos colunistas de meios de todas as modalidades seguem até hoje
a orientação dessas “fontes”.
Ou seja, o golpismo é algo cultural e está presente em nosso
cotidiano, por mais que tentemos extirpá-lo de nosso dicionário. Mas, a
tortura, os maus tratos, as mortes e desaparecimentos nunca foram nem serão
toleradas. E o melhor jeito de preservar uma boa imagem dos militares de hoje é
esclarecendo a história toda, tintim por tintim.
*Jaime Sautchuk, é jornalista, escritor, militante revolucionanrio e ambientalista!
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