terça-feira, abril 08, 2014

OSSOS DO BAÚ!



JAIME SAUTCHUK*


        Revirar os porões da ditadura militar não é um anseio apenas de familiares de mortos e desaparecidos ou de agremiações políticas. Virou um clamor do povo brasileiro. E, pelo que se pode deduzir de ações práticas, já é também um pleito dos militares das três forças armadas, que acham de bom tom retirar os ossos desse soturno baú.

A ação das comissões da verdade e a ampla divulgação de atrocidades cometidas durante o regime militar, na descomeração do 50º aniversário do golpe de 1964, causam forte impacto. A oficialidade que hoje está nos postos de comando nas três forças armadas, na sua esmagadora maioria, não teve participação alguma no regime que vigorou até 1985.

No entanto, é inevitável a vinculação das fardas e estrelas aos eventos e atrocidades apontadas na mídia convencional, nas redes sociais da net, nas escolas, praças e auditórios. Assim, cresce muito, de modo sensível, a posição de que não é justo macular a imagem dessas instituições por conta do que classificam como erros ou excessos do passado.

Afinal, argumentam, golpes de Estado sempre estiveram presentes na história do Brasil. A própria Independência da ex-colônia portuguesa não foi fruto de revolução popular, mas de um golpe da própria família real. E o mesmo ocorreu na derrubada de D. Pedro II e do Império, com a proclamação da República que até hoje vigora.

Contudo, nossa gente se acostumou a relacionar a palavra golpe com ações militares. Desde a velha República até o mais dramático dos golpes, que implantou o regime militar em 1964, o substantivo “golpismo” e o adjetivo “golpista” pareciam fazer parte de algum dicionário exclusivo da caserna.

Este, contudo, é um grande equívoco. Militar nenhum faz golpe se não contar com o apoio político de setores da sociedade. Em nosso caso, a maior parte das elites sempre foi merecedora do adjetivo, porser adepta do golpismo, com ou sem militares. Basta que seus interesses sejam ameaçados para que a democracia esmoreça.

Usam e abusam das instituições estabelecidas, sejam parlamentos ou instâncias judiciárias. E contam com as poderosas armas dos meios de comunicação de massa por elas controlados. Com estes, manipulam grande parte da opinião pública, que passa a respaldar ações rasteiras, desleais e, é claro, elitistas.

Com isso, ao longo dos séculos o golpismo passou a fazer parte da vida das pessoas comuns. Virou parte da cultura nacional. Seja de maneira subliminar, seja de forma escancarada, os conceitos éticos da lealdade e da solidariedade humana perdem com frequência seu sentido, parecem coisa de filósofo grego.

Para termos uma visão clara de como esse processo acontece, podemos usar o exemplo da grande mídia. O tratamento por essa dado a um tema qualquer tem sempre dois pesos e duas medidas, aplicados sob o comando do pensamento das elites, que podem estar aqui, em solo tropical, ou nos Estados Unidos. Tanto faz.

No mais das vezes, a interferência é direta dos controladores ou donos dessa mídia e pode ser percebida no próprio vocabulário por ela utilizado. Um exemplo do Oriente Médio: o rei da Arábia Saudita é chefe de estado, já o presidente da Síria é ditador. A explicação para esse tratamento diferenciado é simples: o primeiro é alinhado com as políticas de Washington; o outro, não.

        Todos nós sabemos que, durante a ditadura, boa parte da grande mídia brasileira era editada pelo Palácio do Planalto. Em todos os governos. Mas, a relação de jornalistas com o chefe da Casa Civil do general Ernesto Geisel, o também general Golbery do Couto e Silva, chegava a ser promíscua. Poderia citar nomes de jornalistas da grande mídia que mandavam textos pra Golbery ler, antes de publicá-los.

        Mas isso não é privilégio da ditadura. Durante os governos de FHC, ocorria algo parecido. A linha editorial de muitos veículos e de muitos jornalistas era ditada pelo próprio FHC e por outras lideranças tucanas, em especial José Serra. Essa influência não terminou com o fim do reinado tucano, de modo que muitos colunistas de meios de todas as modalidades seguem até hoje a orientação dessas “fontes”.

        Ou seja, o golpismo é algo cultural e está presente em nosso cotidiano, por mais que tentemos extirpá-lo de nosso dicionário. Mas, a tortura, os maus tratos, as mortes e desaparecimentos nunca foram nem serão toleradas. E o melhor jeito de preservar uma boa imagem dos militares de hoje é esclarecendo a história toda, tintim por tintim.


*Jaime Sautchuk, é jornalista, escritor, militante revolucionanrio e ambientalista!

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