Publicado originalmente no Blog “Resistencia” de José Reinaldo Carvalho
em http://www.zereinaldo.blog.br
"Saber
encontrar, descobrir, determinar com exatidão a via concreta ou uma viragem
especial dos acontecimentos que conduza as massas para a verdadeira, final,
decisiva e grande luta revolucionária - nisto consiste a principal tarefa do
comunismo." (Lênin1). A opinião do grande dirigente da Revolução
Socialista deve ser tomada em consideração no debate sobre “novos movimentos” e
“nova esquerda”.
Por Rita Matos Coitinho*
Está em voga há pelo menos 20 anos o discurso de uma "nova esquerda".
Essa esquerda renovada, traduzida nos chamados "novos movimentos
sociais", caracteriza-se, de acordo com as modernas teorias sociais, pela
multiplicidade de bandeiras, fundadas em geral em reivindicações por direitos
de terceira geração - direitos ligados à cidadania, ao meio ambiente, às
liberdades sexuais, ao acesso a serviços do Estado etc.
Ainda que não seja unanimidade, não é exagero afirmar que a ampla maioria das
teorias relativas aos novos movimentos sociais considera que estes surgem em
contraposição ao que seria uma "velha esquerda": nomeadamente a
esquerda marxista-leninista, classista, dos partidos comunistas. A análise das
diversas teorizações sobre movimentos sociais mereceria um artigo (ou mesmo
vários) à parte. O que nos interessa hoje aqui é, justamente, a nomenclatura
adotada para classificar os partidos comunistas: velha esquerda.
Por que seriam démodés os partidos comunistas? Por sua forma verticalizada de
organização - uma vez que, por oposição, os novos movimentos caracterizam-se
por sua "horizontalidade"? Por seu foco nas questões de classe - uma
vez que "classe" seria também um conceito superado em uma sociedade
"globalizada" e "multifacetada"? A "modernidade
líquida" teria também derretido as possibilidades de uma nova forma de
sociedade, socialista?
A questão da definição das classes
É claro que, assim como o trabalho, a
questão de classe assumiu novos contornos na contemporaneidade. A situação de
concentração de grandes contingentes de trabalhadores no interior das fábricas,
típica de períodos anteriores, tornava mais simples a organização sindical e,
em decorrência disso, o conceito de classe podia ser facilmente definido.
Atualmente, falar em classes sociais requer um esforço maior de definição e não
faltam trabalhos que anunciam o fim das classes, ou, ao menos, o fim do
protagonismo histórico da classe trabalhadora2.
Estes argumentos padecem de enormes
limitações. Não só porque entendem o trabalho fora de sua dimensão ontológica
(como condição de existência de toda sociedade humana), mas também porque
desconsideram a permanência da produção de mercadorias como base da economia
mundial, conforme mostraram os estudos de Ricardo Antunes3. A realidade é que o
capital adentra todas as esferas da vida social, da atividade fabril à
tecnologia, aos serviços, à produção do saber e à agricultura. O
assalariamento, formal ou informal, é ainda a relação de trabalho fundamental.
A questão das classes como sujeito histórico mantém atualidade e relevância.
Elas não desapareceram, como se procura afirmar. Apenas ganharam novos
contornos, resultantes das mudanças por que passou o mundo do trabalho com o avanço
do capitalismo. Menos homogênea, a classe trabalhadora contemporânea é muitas
vezes mais complexa do que a classe trabalhadora do século 19, que figurava nos
escritos clássicos de Marx. Fragmentada, ela encontra-se ainda nas fábricas,
mas também nos trabalhos de serviços e comércio, como assalariada no campo ou,
ainda, impedida de integrar-se ao mundo do trabalho pelo desemprego. Essas
situações tão variadas trazem a aparência de que não há nada que unifique esses
trabalhadores, já que realizam atividades tão diferentes entre si. Porém, há
características fundamentais que são comuns a todos: sua relação de submissão
ao capital, pelo trabalho assalariado, sua dependência dessa relação para
sobreviver e a apropriação do produto do trabalho por terceiros.
Estas questões não estão aparentes e
as aspirações dos grupos sociais variam infinitamente, de acordo com o tipo de
atividade que se realiza, local de trabalho etc. Esta ausência de unidade, ou
mesmo de “consciência de classe” é muitas vezes apontada como um indicativo de
que a classe trabalhadora, enquanto tal, não tem mais viabilidade como sujeito
histórico. De fato, as estratificações internas à classe (decorrentes dos
diferentes setores onde trabalha, recompensas materiais, acesso a bens
culturais etc.) trazem grande problemas para sua unidade e possibilidades de
ação política em oposição frontal à classe dominante. Esta, no entanto,
apresenta unidade nas questões fundamentais . Conforme Mészáros:
"(...) com respeito à questão da
unidade, não se pode falar de uma simetria entre as duas classes fundamentais
que lutam pela hegemonia na sociedade capitalista. A classe dominante tem de
defender interesses reais, imensos e evidentes por si mesmos, que agem como
força de unificação poderosa entre suas várias camadas. Em completo contraste,
a estratificação interna das classes subordinadas serve para intensificar a
contradição entre interesses imediatos e os de longo prazo, definindo esses
últimos como meramente potenciais, cujas condições de realização necessariamente
escapam da situação imediata".4
Partido de vanguarda
As divisões internas à classe
trabalhadora são provavelmente o maior desafio para a possibilidade de sucesso
dos movimentos orientados contra o capitalismo - e talvez o ponto nevrálgico
que explica os limites dos novos e "novíssimos" movimentos sociais
anticapitalistas. É seguramente por causa deste desafio que se reafirma a
atualidade e a necessidade de um partido comunista de vanguarda. Um partido
capaz de contemplar as demandas presentes nos diversos movimentos e que se
propõe ir além, orientado para a superação revolucionária do capitalismo, para
a construção do poder socialista, que é o poder da classe trabalhadora.
Não se trata de ser uma forma
"nova" ou "velha" de organização. Trata-se da forma
necessária à luta necessária. A superação do capitalismo requer a organização
determinada da classe que se opõe à dominação do capital. A pulverização e
fragmentação em lutas específicas, ainda que os novos movimentos tragam
demandas legítimas pelas quais vale a pena lutar, não são capazes de abalar as
bases do sistema e conduzir a uma derrota da classe dominante.
Partido comunista: disciplina e orientação revolucionária
Lênin, no célebre texto "A
doença Infantil do 'esquerdismo' no comunismo", demonstrou de que maneira
puderam os bolcheviques impor fragorosa derrota sobre a burguesia. Conforme
argumenta, a centralização incondicional e a disciplina mais rigorosa do proletariado
constituíram uma das condições fundamentais para a vitória da revolução.
E por que é que lograram, os
bolcheviques, criar a disciplina necessária? Lênin aponta três elementos: a
consciência da vanguarda proletária; a capacidade de se aproximar (se fundir)
com as mais amplas massas proletárias e não proletárias (alianças) e a justeza
da direção política exercida pela vanguarda, que fez com que sua liderança
fosse reconhecida pelas variadas classes e frações de classe durante o processo
de luta revolucionária.
Essas condições, essenciais ao
sucesso da revolução, formaram-se no processo político e foram facilitadas
"por uma teoria revolucionária justa [o marxismo] que, por sua vez, não é
dogma, mas que só se constituiu de forma definitiva em estreita ligação com a
prática de um movimento verdadeiramente de massas e verdadeiramente
revolucionário"5.
Em um período de apenas quinze anos o
proletariado russo viveu experiências que possibilitaram a construção do
partido nos moldes necessários e a experimentação de formas de luta variadas.
Lênin dividiu esse período em fases: os anos de preparação da revolução
(1903-1905), os anos de revolução (1905-1907), os anos de reação (1907-1910),
os anos de ascenso (1910-1914), a primeira guerra imperialista mundial (1914-1917)
e a segunda revolução da Rússia (fevereiro a outubro de 1917).
Nessas fases as classes e frações de
classe organizaram-se, desenvolveram a propaganda ideológica, realizaram e
dissolveram alianças, criaram novas formas organizativas - como os sovietes -,
atuaram na legalidade do parlamento e na ilegalidade da agitação e das grandes
greves. O czarismo, vencido em 1905, realizou sua contrarrevolução entre 1907 e
1910. Vitorioso, instaurou o capitalismo, revelando ser inexorável o
desenvolvimento da nova forma de organização. Nesses anos "as ilusões
sobre a possibilidade de evitar o capitalismo" desvaneceram-se. A luta de
classes mostrou-se como algo novo e com muita nitidez.
Os partidos revolucionários, durante
os anos de reação czarista aprenderam a atacar e a retroceder. Entenderam que
"não se pode vencer sem saber atacar corretamente e recuar
corretamente". Os bolcheviques souberam recuar quando necessário e
reiniciar o trabalho de forma mais ampla, excluindo de suas fileiras aqueles
que não compreenderam que naquele momento era necessário trabalhar legalmente
nos parlamentos reacionários, nos mais recuados e reacionários sindicatos e
organizações. Nos anos de ascenso (1910-1914), a combinação entre o trabalho
legal (parlamentos, sindicatos etc.) e ilegal possibilitou a criação de um
clima de agitação entre o proletariado, bem como demarcou o campo entre
bolcheviques e mencheviques.
Durante a primeira guerra
imperialista mundial, as lideranças bolcheviques estiveram por longo tempo no
exílio, onde conheceram e debateram as ideias e concepções dos demais partidos
europeus. Os comunistas russos condenavam e denunciavam a ação do partido
social-democrata alemão e da Segunda Internacional, qualificando-a de
"chauvinista", na medida em que apoiava a guerra contra outras
nações. Ao denunciar a guerra imperialista e conclamar a unidade da classe
trabalhadora contra as burguesias que promoviam o conflito, os bolcheviques
ganharam a confiança das massas trabalhadoras. A ação contra a república
parlamentar burguesa da Rússia se deu na esteira da denúncia e da agitação dos
malefícios da guerra imperialista. Na medida em que se lutava contra a república
burguesa reforçava-se que a vitória só seria possível pelo fortalecimento dos
sovietes, lugar do poder popular.
Das experiências vividas naqueles
quinze anos os bolcheviques precisaram ajustar sua forma de ação inúmeras
vezes. Foi necessário abandonar o parlamento em 1905 e, no entanto, foi
importante manter-se nele nos anos posteriores à reação czarista. Lênin
demonstrou, ao escrever sobre esse processo, que a teoria e as formas de ação
não podem ser tomadas como dogma, mas adaptadas ao momento e à situação de
luta.
O partido, no entanto, só pôde se
adaptar às rápidas mudanças conjunturais e às múltiplas formas de luta que se
sucederam porque se fortalecia a cada nova experiência. Conforme Lênin, a
atitude frente aos acontecimentos deve se modificar, mas não o partido. Sem a
férrea disciplina com que foi forjada a organização dos bolcheviques não teria
sido possível passar de uma forma a outra de ação no tempo necessário.
"Quem debilita, por pouco que seja, a disciplina do partido do proletariado
ajuda de fato a burguesia contra o proletariado"6.
A experiência do proletariado russo
mostrou que sem uma organização forte e com orientação clara não há
possibilidade de vitória. A pulverização das demandas e a confusão entre
variadas classes e frações é inevitável em qualquer luta política. Foi a
orientação revolucionária e a capacidade de unificar as massas em torno de um
projeto único que tornou possível a revolução russa.
Conforme Lênin, "a política é
uma ciência e uma arte que não cai do céu, que se não obtém gratuitamente, e se
o proletariado quer vencer a burguesia deve formar os seus 'políticos de
classe', proletários, e que não sejam piores que os políticos burgueses"7.
A ação do partido comunista deve almejar conquistar as opiniões da maioria do
povo, por meio da ação em todos os espaços, por todas as formas de luta
necessárias - legais ou ilegais, a depender do momento histórico. Pois
"sem uma mudança de opiniões da maioria da classe operária a revolução é
impossível, e essa mudança consegue-se por meio da experiência política das
massas, nunca apenas com a propaganda"8.
Foi por não ter abandonado seus
princípios, por ter buscado adaptar-se às condições impostas, sem no entanto
perder de vista o objetivo de se construir o socialismo que triunfou o proletariado
russo sobre a burguesia. A existência de condições adversas, as dificuldades
que a conjuntura apresenta, não devem servir de freio à ação dos partidos
comunistas, mas de estímulo ao fortalecimento do partido, ao estudo da
realidade e à criação de novos instrumentos. "É muitíssimo mais difícil -
e muitíssimo mais valioso - saber ser revolucionário quando ainda não existem
condições para a luta direta, aberta, autenticamente de massas, autenticamente
revolucionária, saber defender os interesses da revolução (mediante propaganda,
agitação e organização) em instituições não revolucionárias e muitas vezes
francamente reacionárias, numa situação não revolucionária, entre massas
incapazes de compreender imediatamente um método revolucionário de ação. Saber
encontrar, descobrir, determinar com exatidão a via concreta ou uma viragem
especial dos acontecimentos que conduza as massas para a verdadeira, final,
decisiva e grande luta revolucionária - nisto consiste a principal tarefa do
comunismo (...)"9.
É certo que as experiências
socialistas do século 20 não podem ser repetidas ou copiadas. Por outro lado, a
construção do socialismo nesta etapa histórica apresenta-se como necessidade
imperiosa. A crise capitalista agiganta-se em todo o mundo e é urgente que se
encontrem respostas de superação do modelo de produção em colapso. Aprender com
a história e nela encontrar elementos que nos auxiliem a colocar o partido à
altura deste desafio é tarefa urgente e necessária de cada militante
comunista.
Notas
1 - LÊNIN, V.I. A doença infantil do
esquerdismo no comunismo. In: LENINE, V.I. Obras escolhidas. São Paulo,
Alfa-Ômega (Progresso/Avante), 1980. Tomo 3, página 333.
2 - Andre Gorz, por exemplo, deu
“adeus ao proletariado” afirmando que o conflito entre capital e trabalho foi
suplantado pelo conflito entre a “mega-máquina burocrático-estatal” e a
população, ao mesmo tempo em que identificou uma não-classe de
não-trabalhadores, composta pelos excluídos que seria agora o sujeito principal
dos embates sociais. Ainda Jeremy Rifkin escreveu que o declínio inexorável dos
níveis de emprego coloca em xeque tanto as potencialidades organizativas de uma
classe trabalhadora como a possibilidade de se afirmar a existência de uma
sociedade do trabalho.
3 - Ver: ANTUNES, Ricardo. Adeus ao
Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho.
Campinas: Editora Cortez, 2002.
4 - MÉZÁROS, I. Para Além do Capital.
Campinas: Boitempo Editorial, 2002.
5 - LÊNIN, V.I. Op.cit. página 282.
6 - idem, 296.
7 - idem, 321.
8 - idem, 324.
9 - idem, 333.
*Rita Matos
Coitinho é mestra em sociologia, cientista social e militante do PCdoB em Santa
Catarina.