O mito do capitalismo “natural”
Há séculos, ideia de que ser humano é “em essência” egoísta-competitivo
justifica relações capitalistas. Descobertas recentes estão derrubando tal
crença
Rafael Azzi, do Boletim “Controversias”
Rafael Azzi, do Boletim “Controversias”
Marinus van Reymerswaele, O
banqueiro e sua esposa
O modelo capitalista de sociedade premia e
estimula o comportamento individualista, utilitário e egoísta. Diversos
pensadores, como o economista Alan Greespan, acreditam que tal comportamento
apenas reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há
muito a fazer a respeito. Entretanto, essa visão do ser humano foi moldada ao
longo da história e, na verdade, os estudos de hoje discordam da noção de que
somos essencialmente individualistas e agressivos.
Alguns filósofos, como Thomas Hobbes,
John Locke e Adam Smith, contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser
humano é, por natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente
para a satisfação egoísta de seus próprios interesses. As principais
instituições políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a partir desses preceitos
sobre a natureza humana.
O modelo social adotado pelos
princípios capitalistas põe em cena uma perspectiva de Estado-Nação que tem
como objetivo estimular as forças do livre mercado e proteger a propriedade
privada. O homem é então considerado um indivíduo autônomo e racional que, ao
optar por viver em sociedade, acredita que esta é a melhor forma de proteger
seus próprios interesses, evitando assim um estado de selvageria natural
representado pela expressão hobbesiana “guerra de todos contra todos”.
Da mesma forma que os indivíduos
proclamam sua autossuficiência, os Estados são vistos na política internacional
como autônomos na busca do próprio interesse. Sob tal perspectiva, as nações
encontram-se em eterna batalha em busca de poder e de bens materiais. A
narrativa histórica éconstruída a partir de
uma constante dicotomia estabelecida entre Estados e indivíduos isolados,
público e privado, termos ocasionalmente unidos apenas por razões de utilidade
ou de lucro.
O mito do homem que sobrevive como
indivíduo é difundido na literatura universal em heróis como Robinson Crusoé: o
homem que consegue, sozinho, através do uso da razão, utilizar a natureza a seu
favor e sobrevive sem o auxílio de outras pessoas. Porém, o que não está dito é
que Crusoé é um homem adulto, que cresceu em uma sociedade complexa, na qual
dependia diretamente de outras pessoas. Além disso, ele apenas aprendeu os
conhecimentos necessários para a sua sobrevivência na ilha deserta através do
contato com experiências de outras pessoas e outras gerações.
Essa visão filosófica, que se
transformou em política, foi naturalizada por um conjunto de teorias
científicas. O darwinismo social é uma interpretação estreita da teoria de
Darwin aplicada à sociedade humana. Tal teoria enfatiza a ideia de que a
evolução se relaciona à competição e à sobrevivência do mais forte, pondo-a em
prática na sociedade humana. Dessa forma, características como individualismo,
agressividade e competição seriam os agentes naturais da evolução. Argumenta-se
que a competição pela sobrevivência fundamenta a evolução humana, a fim de
justificar a sociedade capitalista como o modelo natural a ser adotado.
Atualmente, tal noção é considerada
bastante reducionista. Já se observou, por exemplo, que não apenas a competição
mas também a cooperação entre os indivíduos são fatores de extrema importância
na sobrevivência de espécies sociais. Recentes estudos de sociobiologia vêm
comprovando a hipótese de que o ser humano é, na verdade, um dos animais mais
sociais que existe. Não é difícil comprovar esse fato: vivemos em grupos cada
vez maiores, em sociedades cada vez mais complexas com indivíduos
interdependentes. Temos a necessidade constante de nos sentir conectados a
outras pessoas e de pertencer a um grupo, em um sentimento que remonta às
ideias ancestrais de coletividade e de comunidade.
Uma descoberta biológica recente vem
corroborar essa ideia. Os neurônios-espelhos fazem parte de um importante
sistema cerebral que atua diretamente em nossa conexão com outros indivíduos.
Esse conjunto de neurônios é mobilizado quando vemos outra pessoa fazendo algo.
Pesquisadores constataram que, quando uma pessoa observa outra realizando uma
ação, no cérebro do observador são estimuladas as mesmas áreas que normalmente
regem a ação observada. Portanto, ao que tudo indica, nossa percepção visual
inicia uma espécie de simulação ou duplicação interna dos atos de outros.
Os neurônios-espelhos são a base do
aprendizado e da aquisição da linguagem humana. Mais do que isso, eles tornam
fluida a fronteira entre nós e os outros; são a origem da empatia, que é a
capacidade de nos colocar no lugar de outra pessoa. Pode-se dizer que, ao
observar alguém sorrindo, imediatamente nos sentimos impelidos a sorrir também.
Quando percebemos alguém que está em uma situação que causa dor, a reação
natural é partilhar o sentimento de dor alheia.
A capacidade empática e a necessidade
de fazer parte de um grupo formam as bases, por assim dizer, das religiões
organizadas e do sentimento de nacionalismo. O problema é que, ao mesmo tempo
em que fomentam a empatia coletiva, estas instituições limitam o sentimento
empático pelos indivíduos que não fazem parte do mesmo grupo. Assim, o
indivíduo que faz parte de outra ordem — seja ela uma nação, uma religião, uma
etnia ou uma classe social — é considerado diferente, distante e,
eventualmente, intolerável. Tais rótulos limitam a capacidade empática e
impedem de ver o outro como um semelhante na partilha de sentimentos, desejos e
angústias intrínsecos à natureza humana.
Um exemplo de que a empatia é natural
ao ser humano é a forma como ela ocorre de maneira livre e instintiva nas
crianças. Quando uma criança observa outra pessoa em situação desfavorável,
como a mendicância e a falta de moradia, a primeira reação é o questionamento.
Invariavelmente, as respostas que fazem uso de rótulos auxiliam a explicar a
situação: “é apenas um mendigo” ou “é só um menino de rua”. Com frases assim,
está-se afirmando que o outro não é alguém como nós; trata-se apenas de alguém
diferente, em uma realidade distante da nossa. Portanto, ao estimular
constantemente o egoísmo e o interesse individualista, a sociedade baseada no
modelo atual desestimula a capacidade empática existente em cada um.
Dessa forma, pode-se afirmar que o
desafio do nosso tempo é desnaturalizar o egoísmo social que foi imposto e
recuperar nossa empatia natural, não apenas em relação aos grupos de
pertencimento, mas sobretudo ampliada em relação a toda nossa espécie.
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