Umberto Martins: O trato das divergências no movimento comunista
Desde a antiguidade os filósofos perceberam que o debate das ideias é um motor do desenvolvimento do pensamento humano. A dialética teve origem na contraposição de opiniões e geralmente é do confronto das ideias que emana a luz do conhecimento. O marxismo foi forjado na luta contra as concepções anarquistas e reformistas. Evoluiu com Lênin no fogo de acirradas polêmicas entre bolcheviques e mencheviques.Por Umberto Martins*
Mais tarde, Stálin restringiu o debate e puniu as divergências. E o marxismo deixou de evoluir, estagnou. O movimento comunista herdou e ainda hoje incorre em muitos dos erros cometidos pelo camarada Stálin no que se refere ao tratamento das divergências e ao reconhecimento da necessidade da polêmica para o desenvolvimento do pensamento crítico.
É preciso deixar rolar a dança dos contrários, e estimulá-la, para que a filosofia e a ciência avancem. Isto é ainda mais verdadeiro em temas relacionados à política e à economia, em que pese o fato de que neste terreno em geral as divergências têm caráter de classe.
Os debates e as polêmicas que antecedem o 13º Congresso são uma boa oportunidade para o desenvolvimento do pensamento do PCdoB acerca dos desafios presentes e futuros que se apresentam aos comunistas. Afloram relevantes diferenças de ponto de vista, um conjunto expressivo de divergências que se manifestaram também nas conferências já realizadas e nesta Tribuna de Debates.
Lemos por aqui críticas ao estranho conceito de leninismo contemporâneo (há um leninismo do passado que por acaso ficou arcaico?), aos leilões e concessões, à proposta de pacto político entre capital e trabalho, à centralidade atribuída à frente institucional, à secundarização e gradativo abandono do trabalho e organização no proletariado, entre outras. Até agora a resposta a esses questionamentos, que traduzem inquietações legítimas da militância, é um enigmático silêncio, de forma que ficamos sem saber se são ou não justas. As palavras derramadas na Tribuna de Debate serão palavras ao vento? Espero que não.
O debate aberto e a polêmica civilizada são os canais apropriados para o desenvolvimento da teoria marxista, do pensamento e da ideologia comunista. Não há outro meio. Alimentar a chama do processo crítico e autocrítico, potencializando o debate, me parece ser o método mais adequado para tratar as divergências e desenvolver o pensamento revolucionário do PCdoB.
Centralidade do proletariado, teoria e prática
Do ponto de vista teórico ninguém entre nós parece colocar em questão a centralidade da classe trabalhadora (aqui entendida como sinônimo de proletariado) na luta política e no projeto nacional e internacional do PCdoB. Sabemos, porém, que entre a teoria e a prática pode se interpor um abismo imensurável, que é bom não confundir com atalho.
Efetivamente, ao conferir uma ênfase excessiva e quase exclusiva à frente institucional (o que a tese reforça), o Partido tem relegado ao segundo plano o trabalho junto ao proletariado e, na prática, subestimado o papel e a centralidade da classe trabalhadora no projeto comunista. São muitos os exemplos desta subestimação:
A negligência com o estudo e o conhecimento mais profundo da classe trabalhadora, com seu novo perfil e configuração;
A falta de planejamento da construção do Partido no proletariado, apesar das resoluções do 2º Encontro sobre Questões de Partido;
A escassez de críticas à falsa concepção de nova classe média, que na verdade integra a classe trabalhadora, assim como ao sonho social-democrata com um Brasil de classe média. A luta ideológica em torno do conceito, consciência e identidade de classe não devia ser tratada como um pormenor e negligenciada;
O gradual abandono do trabalho de agitação e propaganda nas portas das empresas, que se considera hoje como uma tarefa própria, senão exclusiva, dos sindicalistas.
São muitos os sinais ou provas da subestimação prática do papel da classe trabalhadora na luta política e no projeto nacional e internacional do PCdoB. Isto está em franca contradição com a teoria e o espírito do marxismo, que se orienta pelo princípio da unidade entre pensamento e ação.
O problema foi identificado no 2º Encontro Sobre Questões do Partido, realizado em abril de 2005. Ali se propôs ações concretas para corrigir a subestimação (que então foi considerado uma deficiência), mas a triste verdade é que pouco ou nada foi feito, as resoluções do 2º Encontro viraram letra morta e a situação piorou sensivelmente desde então. Hoje já nem se fala mais disso.
A meu ver a centralidade da ação partidária não deve ser conferida à frente eleitoral e institucional, como propõe a tese, mas à construção do Partido na classe trabalhadora, à ampliação de sua influência e efetiva capacidade de mobilização nos movimentos sociais.
Não devemos alimentar a ilusão de que conseguiremos grandes avanços eleitorais sem uma organização maior e mais sólida nas massas trabalhadoras, que constituem maioria em nossa sociedade. Muito menos num sistema em que a sorte da eleição depende sobremaneira da contribuição e dos favores da burguesia e das peregrinações paroquianas aos templos dos financiadores de campanha.
A história do PT e de Lula, que nasceram no movimento operário e por força deste chegaram ao governo, é muito sugestiva sobre a necessidade de acumular forças no seio da classe trabalhadora como pré-condição para partidos populares crescerem eleitoralmente. É a este propósito que deve se voltar também nossa ação no Parlamento e nos governos, o que hoje não parece ser o caso. A equação deve ser invertida: centralidade para a organização na classe trabalhadora inclusive no trabalho institucional.
É o que sugeriu Amazonas ao se referir à conduta do Partido nas administrações, citado aqui pelo camarada Caio Botelho. “Nosso objetivo é servir ao povo. É ajudá-lo a se organizar melhor, a elevar sua consciência política, a fim de obter novas conquistas”.
É um dever dos comunistas lutar pela preservação do caráter de classe do Partido, especialmente numa época em que o pensamento predominante alardeia o fim das classes sociais e a emergência de uma nova classe média no Brasil. Se o Partido perder seu caráter classista, proletário, estará também perdido para a Revolução.
Talvez se pense que a perspectiva revolucionária seja hoje um sonho do passado projetado nas calendas gregas, uma utopia. Mas é bom refletir melhor sobre a crise econômica e geopolítica do imperialismo e as jornadas de junho por aqui. A história não tardará a entrar em trabalho de parto. O capitalismo não tem futuro e o seu coveiro é a classe trabalhadora, ninguém mais.
*Umberto Martins é membro da Comissão Nacional Sindical do PCdoB.
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