segunda-feira, fevereiro 24, 2014

POEMA DE PIER PAOLO PASSOLINI, CINEASTA, DRAMATURGO E POETA ITALIANO, MARXISTA E REVOLUCIONÁRIO, A SEU MODO!!

Enviado e postado no Facebook por Elizabeth Lorenzotti
"É assim por puro acaso que um brasileiro é fascista e um outro é subversivo
aquele que arranca os olhos
pode ser tomado por aquele a quem se arrancam os olhos."

Li na página de Ivana Bentes :”Pasolini no lindíssimo e brutal poema Hierarquia que descreve sua visita ao Rio em 1970, diante de um soldado negro e pobre de 'uma divisão especialmente treinada para lutar contra os subversivos e torturá-los'.”

E fui procurar o poema do mestre do cinema, da poesia, da filosofia.

Pier Paolo Pasolini, Trasumanar e organizzar
"Hierarquia"
Garzanti editore
Tradução Michel Lahud

Se chego numa cidade
além do oceano
Chego muitas vezes numa cidade nova, transportado pela dúvida.
Convertido de um dia pro outro em peregrino
de uma fé na qual não creio;
representante de uma mercadoria há muito depreciada,
mas é grande, sempre, uma estranha esperança --
Desço do avião com o andar culpado,
o rabo entre as pernas, e uma necessidade eterna de mijar,
que me faz caminhar um tanto vergado com um sorriso incerto --
Safar-se da alfândega e, muitas vezes, dos fotógrafos:
administração de rotina que cada um trata como exceção.
Depois o desconhecido.
Quem passeia às quatro da tarde
ao longo dos canteiros cheios de árvores
e pelos bulevares de uma cidade desesperada onde europeus pobres
vieram recriar um mundo à imagem e semelhança do deles,
forçados pela pobreza a fazer de um exílio a vida?
De olho no meu trabalho, nos meus deveres --
Depois, nas horas vagas,
começa minha busca, como se também ela fosse culpa --
A hierarquia está porém bem clara na minha cabeça.
Não há Oceano que resista.
Dessa hierarquia os últimos são os velhos.
Sim, os velhos, a cuja categoria começo a pertencer
(não falo do fotógrafo Saderman que com sua mulher
amiga já da morte me acolhe sorrindo
no pequeno estúdio de toda a sua vida)
Sim, existem alguns velhos intelectuais
que na Hierarquia
se colocam à altura dos michês mais bonitos
os primeiros a serem encontrados nos lugares que a gente logo descobre
e que como Virgílios nos conduzem com popular delicadeza
alguns velhos são dignos do Empíreo,
são dignos de figurar junto ao primeiro garoto do povo
que se dá por mil cruzeiros em Copacabana
ambos são o meu guia
que me segurando pela mão com delicadeza,
a delicadeza do intelectual e a do operário
(além do mais desempregado)
a descoberta da invariabilidade da vida
requer inteligência e amor
Vista do hotel da rua Resende Rio --
a ascese precisa do sexo, do caralho --
aquela portinhola do hotel onde se paga o cubículo --
se olha o Rio por dentro, numa aparência da eternidade,
a noite de chuva que não refresca,
e banha as ruas miseráveis e os escombros,
e as últimas cornijas do liberty dos portugueses pobres
milagre sublime!
E portanto Josué Carrea é o Primeiro na Hierarquia,
e com ele Harudo, que veio criança da Bahia, e Joaquim.
A favela era como Cafarnaum sob o sol --
percorrida pelos regos dos esgotos
barraco sobre barraco
vinte mil famílias
(ele na praia me pedindo cigarro como um prostituto)
Não sabíamos que pouco a pouco nos revelaríamos,
prudentemente, uma palavra após a outra,
dita quase distraidamente:
sou comunista, e: sou subversivo;
sou soldado numa divisão especialmente treinada
para lutar contra os subversivos e torturá-los;
mas eles não sabem;
ninguém se dá conta de nada;
só pensam em viver
(me falando do subproletariado)
A Favela, fatalmente, nos esperava
eu, grande conhecedor, ele, guia --
seus pais nos acolheram, e o irmãozinho nu
recém-saído de trás do oleado --
pois é, invariabilidade da vida, a mãe
conversou comigo como Maria Limardi, me preparando uma limonada
sagrada do hóspede; a mãe de cabelos brancos mas ainda jovem na carne;
envelhecida como envelhecem os pobres, embora moça;
sua gentileza e a de seu companheiro,
fraternal com o filho que por sua exclusiva vontade
era agora como um mensageiro da Cidade --
Ah, subversivos, procuro o amor e encontro vocês.
Procuro a perdição e encontro a sede de justiça.
Brasil minha terra,
Terra dos meus verdadeiros amigos,
Que não se ocupam de nada
Ou se tornam subversivos e como santos ficam cegos.
No círculo mais baixo da Hierarquia de uma cidade
imagem do mundo que de velhos se fez novo,
coloco os velhos, os velhos burgueses,
porque um velho proletário da cidade continua sempre moço
Não tem nada a perder --
anda de calção e camiseta como o filho Joaquim.
Os velhos, a minha categoria,
queiram eles ou não --
Não se pode fugir do destino de possuir o Poder, ele se coloca sozinho
lenta e fatalmente nas mãos dos velhos,
mesmo que tenham as mãos furadas
e sorriam humildemente como mártires sátiros --
Acuso os velhos de terem apesar de tudo vivido,
acuso os velhos de terem aceitado a vida
(e podiam não aceitá-la, mas não existem vítimas inocentes)
a vida se acumulando deu o que queria dar --
acuso os velhos de terem feito a vontade da vida.
Voltemos à Favela
onde as pessoas ou não pensam em nada
ou querem se tornar mensageiras da Cidade
ali onde os velhos são filo-americanos --
dentre os jovens que jogam bola com bravura
em frente a cumeeiros encantados sobre o frio Oceano,
quem quer alguma coisa e sabe que quer, foi escolhido por acaso --
inexperientes em imperialismo clássico
em qualquer delicadeza para com o velho Império a ser desfrutado
os Americanos separam uns dos outros os irmãos supersticiosos
sempre aquecidos por seu sexo como bandidos por uma fogueira de sarças
É assim por puro acaso que um brasileiro é fascista e um outro é subversivo;
aquele que arranca os olhos
pode ser tomado por aquele a quem se arrancam os olhos.
Joaquim não poderia jamais se distinguir de um fascínora.
Por que então não amá-lo se o fosse?
Também o fascínora está no vértice da Hierarquia,
com seus traços simples apenas esboçados
como seu olho simples
sem outra luz que não a da carne
Assim no cume da Hierarquia
encontro a ambigüidade, o nó inextricável.
Ó Brasil, minha desgraçada pátria,
devotada sem escolha à felicidade
(de tudo o dinheiro e a carne são donos
enquanto tu és assim tão poético)
dentro de cada habitante teu, meu concidadão,
existe um anjo que não sabe de nada,
sempre debruçado sobre seu sexo,
e, velho ou jovem, se apressa
a pegar em armas e lutar,
indiferentemente, pelo fascismo ou pela liberdade --
Ó Brasil, minha terra natal, onde
as velhas lutas -- bem ou mal, já vencidas --
para nós, velhos, voltam a fazer sentido --
respondendo à graça dos delinqüentes ou dos soldados
à graça brutal.

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