A difícil transição ao socialismo
Definimos aqui o capitalismo como um sistema econômico em que o
proprietário dos meios de produção explora a força de trabalho de indivíduos destituídos dos meios de
produção.
João Alexandre Peschanski
Por um lado, a desigualdade
fundamental da relação entre o capitalista e o trabalhador é indesejável, na
medida em que, na sua forma extremada, nega o acesso mínimo aos bens de
subsistência a uma parcela da população, refém das
estratégias de lucro dos detentores dos meios de produção, o que é moralmente
injustificável, e instaura geralmente um conjunto de mecanismos que recria e
agrava as posições desiguais dos capitalistas e dos trabalhadores em relação à
satisfação das necessidades básicas e à possibilidade de viver vidas dignas.
Por outro lado, os mecanismos básicos do capitalismo – a propriedade privada
dos meios de produção, o mercado de trabalho e a troca de produtos num mercado visando
ao lucro – são em geral relativamente funcionais e criam as condições para que
o capitalismo se reproduza. Por mais que haja déficit ético e notórias
ineficiências, o capitalismo é uma maneira razoavelmente previsível e estável
de organizar a produção e a troca de bens e serviços: tanto os capitalistas
quanto os trabalhadores têm incentivos, variados e variáveis, para, no dia
seguinte, manter o sistema funcionando; existem mecanismos para estimular a
inovação tecnológica etc.
Agora, num exercício de imaginação, assumamos que haja um projeto de
economia ou estejamos racionalmente convencidos de uma simulação de
instituições econômicas mais justa e eficiente, que seja robusto e sustentável.
Ou seja, aceitemos a proposta do socialismo como uma alternativa de organização
econômica que, com base em instituições diferentes das que existem no
capitalismo, seja possível, viável e atingível. (Com David Calnitsky, expus
justamente na Margem Esquerda 17 alguns modelos de
alternativas ao capitalismo – imaginemos, numa suposição irrealista com base no
nível atual de desenvolvimento desses modelos, ainda frágeis, que um deles ou
uma combinação deles seja reproduzível no tempo, sem se perverter ou se autodestruir.)
Aceitemos hipoteticamente que há uma forma racional e qualitativamente melhor
do que o capitalismo para organizar a economia.
Uma primeira dedução dessa hipótese é que, para os trabalhadores, é
melhor estar no socialismo do que no capitalismo. É de seu interesse objetivo estar numa
sociedade onde a satisfação social das necessidades se dá sem a exploração de
sua força de trabalho. Vimos aqui que
a posição na estrutura de classe determina em teoria os interesses objetivos; é racional para o
trabalhador acabar com a exploração de sua força de trabalho, se uma
alternativa melhor existir.
Uma segunda dedução dessa hipótese é que, sem as condições apropriadas
para uma transição de baixo custo do capitalismo ao socialismo, é racional para
os trabalhadores preferirem lutar para “melhorar” o capitalismo do que para
“criar” o socialismo. (Especifico que, nesse exercício de abstração,
capitalismo e socialismo são definidos como modos de organizar a economia qualitativamente
diversos – isto é, para funcionar de maneira estável, o socialismo depende da
construção de novas instituições.) Geralmente, transições são custosas: elevam
o nível de incerteza, desorganizam o funcionamento estável de instituições
(mesmo que diagnostiquemos essas instituições como injustas e ineficientes). Os
capitalistas têm, potencialmente, a capacidade real de tornar muito custosa a
transição do capitalismo para o socialismo, especialmente porque controlam
ainda no capitalismo o fluxo de investimentos, a condição da produção futura. O
desinvestimento leva possivelmente a uma desorganização real da economia, em
que a taxa de satisfação social das necessidades é negativa, isto é, em que a
população, que se emancipa da exploração, está pelo menos por um tempo com um acesso às condições de
sua sobrevivência inferior ao que tinha enquanto era explorada. O horizonte de
que, no futuro, a situação vai efetivamente melhorar não é necessariamente
alentador para as pessoas que, no presente, não conseguem sobreviver.
Uma terceira dedução é que, de toda maneira, a existência de uma
alternativa real ao capitalismo empodera os trabalhadores. No capitalismo – sem
a existência de uma alternativa –, é mais provável que o trabalhador esteja
numa posição mais vulnerável na relação de força com o capitalista do que o
contrário, especialmente se não se está numa situação de pleno emprego, numa
sociedade onde a mediana da população tenha acesso a uma qualificação
profissional de bom nível e num espaço em que haja alta densidade
organizacional do trabalho. A alternativa real permite ao trabalhador aumentar
seu poder de barganha e, portanto, melhorar no presente a qualidade de sua
vida, claro que nos limites da reprodução da exploração. O capitalista tem
interesse em estabelecer um compromisso com os trabalhadores, se ele tiver
acesso a informações que sinalizem que estes vão cumprir com o combinado, isto
é, limitar-se a exigir melhorias no contexto em que aceitam as regras
necessárias para a reprodução do capitalismo.
Na medida em que estabelecemos que capitalismo e socialismo são sistemas
qualitativamente diversos, o melhor dos capitalismos nunca será tão eficiente e
tão justo quanto o socialismo. Por conseguinte, a existência de uma alternativa
real ao capitalismo não é suficiente para a criação do socialismo, por mais
que, como argumentei com Calnitsky no artigo supracitado, a teorização da
alternativa seja absolutamente necessária. Nessa perspectiva, uma tarefa
principal dos socialistas no capitalismo é criar as condições reais para
reduzir os custos da transição de um modo de organizar a economia para outro,
tema sobre o qual espero voltar em um post futuro.
João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da
coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo,
2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda:
Ensaios Marxistas.
2 comentários:
Há apenas a alternativa entre propriedade comunal e propriedade privada dos meios de produção. São inúteis todas as formas alternativas de organização social, as quais na prática se mostram auto-anuladoras. Se também se conclui que o socialismo é inviável, não se pode então deixar de reconhecer que o capitalismo é o único sistema possível de organização social, baseada na divisão do trabalho. Esse resultado, vindo de investigação teórica, não será surpresa ao historiador ou ao filósofo da história. Se o capitalismo tem obtido êxito em manter sua existência apesar da inimizade que sempre encontrou quer dos governos quer das massas, se o capitalismo ainda não foi obrigado a abrir caminho para outras formas de cooperação social, as quais têm gozado, em grau muito maior, das simpatias dos teóricos e de homens de negócios de conhecimento apenas prático, isto deve ser atribuído, tão somente, ao fato de que nenhum outro sistema de organização social é factível. (Ludwig von Mises. Liberalismo — Segundo a tradição clássica)
Há apenas a alternativa entre propriedade comunal e propriedade privada dos meios de produção. São inúteis todas as formas alternativas de organização social, as quais na prática se mostram auto-anuladoras. Se também se conclui que o socialismo é inviável, não se pode então deixar de reconhecer que o capitalismo é o único sistema possível de organização social, baseada na divisão do trabalho. Esse resultado, vindo de investigação teórica, não será surpresa ao historiador ou ao filósofo da história. Se o capitalismo tem obtido êxito em manter sua existência apesar da inimizade que sempre encontrou quer dos governos quer das massas, se o capitalismo ainda não foi obrigado a abrir caminho para outras formas de cooperação social, as quais têm gozado, em grau muito maior, das simpatias dos teóricos e de homens de negócios de conhecimento apenas prático, isto deve ser atribuído, tão somente, ao fato de que nenhum outro sistema de organização social é factível. (Ludwig von Mises. Liberalismo — Segundo a tradição clássica)
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