Lincoln é um filme de drama e biográfico lançado em 2012 e em exibição
no Brasil, dirigido por Steven Spielberg com Sally Field como Mary Todd Lincoln e Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln. O filme
baseia-se na obra biográfica de Lincoln Team of Rivals: The Political
Genius of Abraham Lincoln de Doris Kearns Goodwin, o filme abrange
os quatro últimos meses de vida de Lincoln. As filmagens começaram
segunda-feira, 17 de outubro de 2011 e terminou em 19
de dezembro de 2011. O filme está
programado para lançamento limitado em 9 de novembro de 2012 e grande
lançamento em 16 de novembro de 2012, pela DreamWorks através da distribuidora Touchstone da Disneynos Estados Unidos e
internacionalmente pela 20th Century Fox.
por Vicenç Navarro, da Carta Maior
O filme “Lincoln”, de Steven Spielberg,
que acaba de estrear no Brasil, narra como esse presidente de forte lembrança
popular lutou contra a escravidão e pela transformação dos escravos em
trabalhadores. O que a obra cinematográfica não conta, porém, é que Lincoln
também lutou por outra emancipação: que os escravos e os trabalhadores em geral
fossem senhores não apenas de sua atividade em si, mas também do produto
resultante de seu trabalho.
O filme “Lincoln”, produzido e dirigido
por um dos diretores mais conhecidos dos EUA, Steven Spielberg, fez reviver um
grande interesse pela figura de Lincoln, um dos presidentes que, como Franklin
D. Roosevelt, sempre apareceu no ideário estadunidense com grande lembrança
popular. Destaca-se tal figura política como o fiador da unidade dos EUA, após
derrotar os confederados que aspiravam à secessão dos Estados do Sul daquele
Estado federal.
É também uma figura que se destaca na
história dos EUA por ter abolido a escravidão e ter dado a liberdade e a
cidadania aos descendentes das populações imigrantes de origem africana, ou
seja, a população negra, que nos EUA se conhece como a população
afro-americana.
Lincoln foi também um dos fundadores do Partido Republicano, que em suas origens foi diretamente oposto ao Partido Republicano atual - este altamente influenciado hoje por um movimento – o Tea Party – chauvinista, racista e reacionário, por trás do qual existem interesses econômicos e financeiros que querem eliminar a influência do governo federal na vida econômica, social e política do país.
Lincoln foi também um dos fundadores do Partido Republicano, que em suas origens foi diretamente oposto ao Partido Republicano atual - este altamente influenciado hoje por um movimento – o Tea Party – chauvinista, racista e reacionário, por trás do qual existem interesses econômicos e financeiros que querem eliminar a influência do governo federal na vida econômica, social e política do país.
O Partido Republicano fundado pelo
presidente Lincoln era, pelo contrário, um partido federalista, que considerou
o governo federal como avalista dos Direitos Humanos. E entre eles, a
emancipação dos escravos, tema central do filme “Lincoln” e para o qual o
presidente deu maior expressão. Terminar com a escravidão significava que o
escravo passava a ser trabalhador, dono de seu próprio trabalho.
Lincoln, inclusive antes de ser presidente, considerou outras conquistas sociais como parte também dos Direitos Humanos e, entre elas, o direito do mundo do trabalho de controlar não só a atividade em si, mas também o produto resultante dela. O direito de emancipação dos escravos transformava o escravo em uma pessoa livre assalariada, unida – segundo ele – em laços fraternais com os outros membros da classe trabalhadora, independentemente da cor da pele.
Lincoln, inclusive antes de ser presidente, considerou outras conquistas sociais como parte também dos Direitos Humanos e, entre elas, o direito do mundo do trabalho de controlar não só a atividade em si, mas também o produto resultante dela. O direito de emancipação dos escravos transformava o escravo em uma pessoa livre assalariada, unida – segundo ele – em laços fraternais com os outros membros da classe trabalhadora, independentemente da cor da pele.
Suas demandas de que o escravo deixasse
de sê-lo e de que o trabalhador – tanto branco como negro – fosse o dono não só
de seu trabalho, mas também do produto de seu trabalho, eram igualmente
revolucionárias. A emancipação da escravidão requeria que a pessoa fosse dona
do seu trabalho.
A emancipação da classe trabalhadora
significava que a classe trabalhadora fosse dona do produto do seu trabalho. E
Lincoln demandou os dois tipos de emancipação. O segundo tipo de emancipação,
entretanto, nem sequer é citado no filme Lincoln. Na realidade, é ignorado. E
utilizo a expressão “ignorado” em lugar de “escondido” porque é totalmente
possível que os autores do filme ou do livro sobre o qual se baseia nem sequer
conheçam a história real de Lincoln.
A Guerra Fria no mundo cultural e inclusive acadêmico dos EUA (que continua existindo) e o enorme domínio do que ali se chama a Corporate Class (a classe dos proprietários e gestores do grande capital) sobre a vida, não só econômica, mas também cívica e cultural, explica que a história formal dos EUA que se ensina nas escolas e nas universidades seja muito distorcida, purificada de qualquer contaminação ideológica procedente do movimento operário, seja socialismo, comunismo ou anarquismo.
A Guerra Fria no mundo cultural e inclusive acadêmico dos EUA (que continua existindo) e o enorme domínio do que ali se chama a Corporate Class (a classe dos proprietários e gestores do grande capital) sobre a vida, não só econômica, mas também cívica e cultural, explica que a história formal dos EUA que se ensina nas escolas e nas universidades seja muito distorcida, purificada de qualquer contaminação ideológica procedente do movimento operário, seja socialismo, comunismo ou anarquismo.
A grande maioria dos estudantes
estadunidenses, inclusive das universidades mais prestigiadas e conhecidas, não
sabe que a festa de 1º de Maio, celebrada mundialmente como o Dia Internacional
do Trabalho, é uma festa em homenagem aos sindicalistas estadunidenses que
morreram em defesa de trabalhar oito horas por dia (em lugar de doze), vitória
que transformou tal reivindicação exitosa na maioria dos países do mundo.
Nos EUA, tal dia, o 1º de Maio, além de
não ser festivo, é o dia da Lei e da Ordem - Law and Order Day - (ver o livro
People’s History of the U.S., de Howard Zinm). A história real dos EUA é muito
diferente da história formal promovida pelas estruturas de poder
estadunidenses.
As ignoradas e/ou escondidas simpatias de Lincoln
As ignoradas e/ou escondidas simpatias de Lincoln
Lincoln, já quando era membro da Câmara Legislativa de seu Estado de Ilinóis, simpatizou claramente com as demandas socialistas do movimento operário, não só dos EUA, mas também mundial.
Na realidade, Lincoln, tal como
indiquei no começo do artigo, considerava como um Direito Humano o direito do
mundo do trabalho de controlar o produto de seu trabalho, postura claramente
revolucionária naquela época (e que continua sendo hoje) e que nem o filme nem
a cultura dominante nos EUA lembram ou conhecem, que está convenientemente
esquecida nos aparatos ideológicos do establishment estadunidense controlados
pela Corporate Class.
Na realidade, Lincoln considerou que a
escravidão era o domínio máximo do capital sobre o mundo do trabalho e sua
oposição às estruturas de poder dos Estados sulinos se devia precisamente a que
percebia estas estruturas como sustentadoras de um regime econômico baseado na
exploração absoluta do mundo do trabalho.
Daí que visse a abolição da escravidão como a liberação não só da população negra, mas de todo o mundo do trabalho, beneficiando também a classe trabalhadora branca, cujo racismo ele via que ia contra seus próprios interesses. Lincoln também indicou que “o mundo do trabalho antecede o capital. O capital é o fruto do trabalho, e não teria existido sem o mundo do trabalho, que o criou. O mundo do trabalho é superior ao mundo do capital e merece a maior consideração (…). Na situação atual o capital tem todo o poder e há que reverter este desequilíbrio”.
Daí que visse a abolição da escravidão como a liberação não só da população negra, mas de todo o mundo do trabalho, beneficiando também a classe trabalhadora branca, cujo racismo ele via que ia contra seus próprios interesses. Lincoln também indicou que “o mundo do trabalho antecede o capital. O capital é o fruto do trabalho, e não teria existido sem o mundo do trabalho, que o criou. O mundo do trabalho é superior ao mundo do capital e merece a maior consideração (…). Na situação atual o capital tem todo o poder e há que reverter este desequilíbrio”.
Leitores dos escritos de Karl Marx,
contemporâneo de Abrahan Lincoln, lembrarão que algumas destas frases eram
muito semelhantes às utilizadas por tal analista do capitalismo em sua análise
da relação capital/trabalho sob tal sistema econômico.
Será surpresa para um grande número de leitores saber que os escritos de Karl Marx influenciaram Abraham Lincoln, tal como documenta detalhadamente John Nichols em seu excelente artículo “Reading Karl Marx with Abraham Lincoln Utopian socialists, Germam communists and other republicans” publicado em Political Affairs (27/11/12), e do qual extraio as citações, assim como a maioria dos dados publicados neste artigo.
Será surpresa para um grande número de leitores saber que os escritos de Karl Marx influenciaram Abraham Lincoln, tal como documenta detalhadamente John Nichols em seu excelente artículo “Reading Karl Marx with Abraham Lincoln Utopian socialists, Germam communists and other republicans” publicado em Political Affairs (27/11/12), e do qual extraio as citações, assim como a maioria dos dados publicados neste artigo.
Os escritos de Karl Marx eram
conhecidos entre os grupos de intelectuais que estavam profundamente
insatisfeitos com a situação política e econômica dos EUA, como era o caso de
Lincoln. Karl Marx escrevia regularmente no The New York Tribune, o rotativo
intelectual mais influente nos Estados Unidos daquele período. Seu diretor,
Horace Greeley, se considerava um socialista e um grande admirador de Karl
Marx, quem convidou para ser colunista de tal jornal.
Nas colunas de seu jornal incluiu
grande número de ativistas alemães que haviam fugido das perseguições ocorridas
na Alemanha daquele tempo, uma Alemanha altamente agitada, com um nascente
movimento operário que questionava a ordem econômica existente. Alguns destes
imigrantes alemães (conhecidos no EUA daquele momento como os “Republicanos
Vermelhos”) lutaram mais tarde com as tropas federais na Guerra Civil,
dirigidos pelo presidente Lincoln.
Greeley e Lincoln eram amigos. Na realidade, Greeley e seu jornal apoiaram desde o princípio a carreira política de Lincoln, sendo Greeley quem lhe aconselhou a que se apresentasse à presidência do país. E toda a evidência aponta que Lincoln era um fervente leitor do The New York Tribune.
Greeley e Lincoln eram amigos. Na realidade, Greeley e seu jornal apoiaram desde o princípio a carreira política de Lincoln, sendo Greeley quem lhe aconselhou a que se apresentasse à presidência do país. E toda a evidência aponta que Lincoln era um fervente leitor do The New York Tribune.
Em sua campanha eleitoral para a
presidência dos EUA convidou vários “republicanos vermelhos” a integrarem-se a
sua equipe. Na realidade, já antes, como congressista, representante da
cidadania de Springfield no Estado de Ilinóis, apoiou frequentemente os movimentos
revolucionários que estavam acontecendo na Europa, e muito em especial na
Hungria, assinando documentos em apoio a tais movimentos.
Lincoln, grande amigo do mundo do trabalho estadunidense e internacional
Lincoln, grande amigo do mundo do trabalho estadunidense e internacional
Seu conhecimento das tradições revolucionárias existentes naquele período não era casual, e sim fruto de suas simpatias com o movimento operário internacional e suas instituições. Incentivou os trabalhadores dos EUA a organizar e estabelecer sindicatos antes e durante sua presidência. Foi nomeado membro honorário de vários sindicatos.
Em sua resposta aos sindicatos de Nova
York afirmou “vocês entenderam melhor que ninguém que a luta para terminar com
a escravidão é a luta para libertar o mundo do trabalho, para libertar todos os
trabalhadores. A libertação dos escravos no Sul é parte da mesma luta pela
libertação dos trabalhadores no Norte”.
E, durante a campanha eleitoral, o
presidente Lincoln promoveu a postura contra a escravidão afirmando explicitamente
que a libertação dos escravos permitiria aos trabalhadores exigir os salários
que lhes permitissem viver decentemente e com dignidade, ajudando com isso a
aumentar os salários de todos os trabalhadores, tanto negros como brancos.
Marx, e também Engels, escreveram com entusiasmo sobre a campanha eleitoral de Lincoln, em um momento em que ambos estavam preparando a Primeira Internacional do Movimento Operário.
Marx, e também Engels, escreveram com entusiasmo sobre a campanha eleitoral de Lincoln, em um momento em que ambos estavam preparando a Primeira Internacional do Movimento Operário.
Em um momento das sessões, Marx e
Engels propuseram à Internacional que enviasse uma carta ao presidente Lincoln
felicitando-o por sua atitude e postura. Na carta, a Primeira Internacional
felicitava o povo dos EUA e seu presidente por, ao terminar com a escravidão,
haver favorecido a liberação de toda a classe trabalhadora, não só estadunidense,
mas também mundial.
O presidente Lincoln respondeu, agradecendo a nota e dizendo que valorizava o apoio dos trabalhadores do mundo a suas políticas, em um tom cordial, que certamente criou grande alarme entre os establishments econômicos, financeiros e políticos de ambos os lados do Atlântico.
O presidente Lincoln respondeu, agradecendo a nota e dizendo que valorizava o apoio dos trabalhadores do mundo a suas políticas, em um tom cordial, que certamente criou grande alarme entre os establishments econômicos, financeiros e políticos de ambos os lados do Atlântico.
Estava claro, a nível internacional
que, como afirmou mais tarde o dirigente socialista estadunidense Eugene Victor
Debs, em sua própria campanha eleitoral, “Lincoln havia sido um revolucionário
e que, por paradoxal que pudesse parecer, o Partido Republicando havia tido, em
suas origens, uma tonalidade vermelha”.
A revolução democrática que Lincoln começou e que nunca se desenvolveu
A revolução democrática que Lincoln começou e que nunca se desenvolveu
Não é preciso dizer que nenhum destes dados aparece no filme Lincoln, nem são amplamente conhecidos nos EUA. Mas, como bem afirmam John Nichols e Robin Blackburn (outro autor que escreveu extensamente sobre Lincoln e Marx), para entender Lincoln tem que entender o período e o contexto nos quais ele viveu. Lincoln não era um marxista (termo sobreutilizado na literatura historiográfica e que o próprio Marx denunciou) e não era sua intenção eliminar o capitalismo, mas corrigir o enorme desequilíbrio existente nele, entre o capital e o trabalho.
Mas, não há dúvida de que foi altamente
influenciado por Marx e outros pensadores socialistas, com os quais
compartilhou seus desejos imediatos, claramente simpatizando com eles, levando
sua postura a altos níveis de radicalismo em seu compromisso democrático. É uma
tergiversação histórica ignorar tais fatos, como faz o filme Lincoln.
Não resta dúvida que Lincoln foi uma personalidade complexa, com muitos altos e baixos. Mas as simpatias estão escritas e bem definidas em seus discursos. E mais, os intensos debates que aconteciam nas esquerdas europeias se reproduziam também nos círculos progressistas dos EUA.
Na realidade, a maior influência sobre
Lincoln foi a dos socialistas utópicos alemães, muitos dos quais se refugiaram
em Ilinóis fugindo da repressão europeia.
O comunalismo que caracterizou tais socialistas influenciou a concepção democrática de Lincoln, interpretando democracia como a governança das instituições políticas por parte do povo, no qual as classes populares eram a maioria.
O comunalismo que caracterizou tais socialistas influenciou a concepção democrática de Lincoln, interpretando democracia como a governança das instituições políticas por parte do povo, no qual as classes populares eram a maioria.
Sua famosa Expressão (que se converteu
no esplêndido slogan democrático mais conhecido no mundo – Democracy for the
people, of the people and by the people - claramente afirma a impossibilidade
de ter uma democracia do povo e para o povo sem que seja realizada e levada a
cabo pelo próprio povo. Daí vem a libertação dos escravos e do mundo do
trabalho como elementos essenciais de tal democratização.
Seu conceito de igualdade levava
inevitavelmente a um conflito com o domínio de tais instituições políticas pelo
capital. E a realidade existente hoje nos EUA e que detalho em meu artigo “O
que não se disse nos meios de comunicação sobre as eleições nos EUA” (Público,
13.11.12)é uma prova disso. Hoje a Corporate Class controla as instituições
políticas do país.
Últimas observações e um pedido
Últimas observações e um pedido
Repito que nenhuma destas realidades aparece no filme. Spielberg não é, afinal, nenhum Pontecorvo e o clima intelectual estadunidense ainda está estancado na Guerra Fria que lhe empobrece intelectualmente. “Socialismo” continua sendo uma palavra mal vista nos círculos do establishment cultural daquele país.
E, na terra de Lincoln, aquele projeto
democrático que ele sonhou nunca se realizou devido a enorme influência do
poder do capital sobre as instituições democráticas, influência que diminuiu
enormemente a expressão democrática naquele país. E o paradoxo brutal da
historia é que o Partido Republicano se tenha convertido no instrumento
político mais agressivo hoje existente a serviço do capital.
Certamente, agradeceria que todas as pessoas que achem este artigo interessante o distribuam amplamente, incluindo, em sua distribuição os críticos de cinema, que em sua promoção do filme, seguramente não dirão nada do outro Lincoln desconhecido em seu próprio país (e em muitos outros).
Certamente, agradeceria que todas as pessoas que achem este artigo interessante o distribuam amplamente, incluindo, em sua distribuição os críticos de cinema, que em sua promoção do filme, seguramente não dirão nada do outro Lincoln desconhecido em seu próprio país (e em muitos outros).
Um dos fundadores do movimento revolucionário
democrático nem sequer é reconhecido como tal.
Sua emancipação dos escravos é uma
grande vitória que deve ser celebrada. Mas Lincoln foi muito além. E disto nem
se fala.
*Vicenç Navarro (Barcelona, 1937) é cientista social. Foi professor catedrático da Universidade de Barcelona e hoje dá aulas nas universidades Pompeu Fabra e Johns Hopkins. Por sua luta contra o franquismo, viveu anos exilado na Suécia. Este artigo foi publicado em
*Vicenç Navarro (Barcelona, 1937) é cientista social. Foi professor catedrático da Universidade de Barcelona e hoje dá aulas nas universidades Pompeu Fabra e Johns Hopkins. Por sua luta contra o franquismo, viveu anos exilado na Suécia. Este artigo foi publicado em
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