Noé amaldiçoa Canaã, filho de Cam
O
doutor em genética humana Sérgio Pena, no artigo Desinventando as raças,
contido no livro Charles Darwin em um futuro não tão distante (Instituto
Sangari) considera que a “cristalização do conceito de raças e a emergência do
racismo coincidiram historicamente com dois fenômenos: o início do tráfico de
escravos da África para a América e o abandono da então tradicional
interpretação religiosa da natureza em favor de interpretações científicas”.
No
caso do cristianismo, seita dominante nos países que traficavam escravos, foi
mudada a ênfase na origem da humanidade a partir de Adão e Eva e enfatizada a
descendência dos humanos a partir de três filhos de Noé: Cam, Sem e Jafé. Cam,
que flagrou o pai bêbado e nu, foi condenado por Noé a ter toda a sua
descendência tornada escrava – e os descendentes de Cam, a partir de Canaã,
seriam os negros africanos. Já os judeus se consideram descendentes de Sem e
com esse pressuposto os sionistas justificam a matança de palestinos por
Israel, como tristemente assistimos nestes dias. Mas voltemos ao “mundo
cristão”. O que fazer com os africanos – e, depois, os nativos do Novo
Continente – convertidos ao cristianismo? Pena prossegue: “Postulou-se que os
escravos convertidos podiam ser mantidos em servidão porque, apesar de
cristãos, eram descendentes de ateus”.
Os
avanços da ciência a partir do XVIII acabaram reforçando o critério racial que
evoluiu dos princípios bíblicos. Até hoje muitos argumentos e classificações
adotados por cientistas do passado repetem classificações racistas entre os
seres humanos, embora os avanços da genética molecular e o sequenciamento do
genoma humano tenham desautorizado qualquer significado biológico para
distinguir “raças” entre os Homo Sapiens Sapiens, como nos denominamos na
atualidade.
Contudo
as “raças” continuam a existir como construções sociais. Em Trabalho
assalariado e capital, Marx escreveu: ““Um negro é um negro... Porém sob determinadas
condições se converte em escravo. Uma máquina de fiar algodão é uma máquina de
fiar algodão. Terão que ocorrer condições especiais para que se converta em
capital”. As condições para um negro se converter em escravo mudaram mas, assim
como a escravidão converteu-se em escravidão assalariada, no Brasil, o último
país a abolir a escravidão, o negro foi convertido no assalariado pior
remunerado...
Em
São Paulo, a mulher negra chega a ganhar 47,8% do rendimento do homem não negro
por hora. No Distrito Federal, a proporção é de 49,5%. Em Salvador, Recife,
Porto Alegre, Fortaleza e Belo Horizonte, o homem não negro ganha quase 50% a
mais do que as mulheres negras. Os dados da Fundação Sistema Estadual de
Análise de Dados (Seade) e do Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Socioeconômicos (Dieese) sobre as regiões metropolitanas, com base na
pesquisa de emprego e desemprego (PED) de 2011, reafirmam a frase da canção de
John Lennon, que diz que a mulher é o negro do mundo, devidamente completada
com a constatação de que, se além de mulher, for negra, a situação piora.
Há
alguns anos, foi realizada a campanha “Onde você guarda o seu racismo?”, que
incentivava a não guardá-lo, mas jogá-lo fora. A campanha passou, mas o racismo
continua, como demonstram os fatos do dia-a-dia, incluindo a discriminação de
gênero evidenciada nos salários de homens e mulheres, brancos e negros.
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