Verissimo, Shakespeare e o STF
Marlon Brando interpreta o discurso de Marco Antonio diante do cadáver de Julio Cesar!!! Uma das mais belas cenas do cinema!
A inovação jurídica do “domínio
funcional do fato” usada à revelia de provas factuais no mais badalado processo
jurídico em curso no Superior Tribunal Federal (STF) vem causando espanto a
quantos acompanham a vida nacional desejando democratização crescente. Luis
Fernando Verissimo recorreu a Shakespeare para tentar entender o que se passa
no excelso tribunal.
No início de novembro, quando
perguntado se sentia desencanto com a política, inclusive com os escândalos
atribuídos ao governo Lula, Verissimo respondeu: “Acho que há muito o que
criticar no governo Lula, mas a oposição ao PT no poder tem sido tão
preconceituosa e desonesta que é preciso cuidar para não ser cúmplice da
reação. Quanto às condenações pelo escândalo do mensalão, acho que só se pode
dizer dos juízes do Supremo o que disse o Marco Antonio sobre os assassinos de
Cesar, na peça do Shakespeare, sem sua ironia: que são todos homens honrados.
Acreditar que foram condicionados pelo clima político ou pela imprensa é
desacreditar em tudo o mais e cair num vácuo moral. Prefiro a condenação do PT
ao vácuo. Mas não deixa de ser estranha a indiferença às origens da prática do
mensalão, para favorecer o PSDB em Minas e na compra de votos para reeleger o
Fernando Henrique”.
A referência do grande escritor
brasileiro ao grande escritor inglês foi mais do que adequada – inclusive sua
ressalva sobre a ironia do bardo (estaria sendo irônico?). Na peça Júlio César,
um grupo de conspiradores convence Bruto de que César está para tornar-se
ditador e que matá-lo é a única forma de impedir esse intento que lhe é
atribuído. São apresentados muitos argumentos, mas nenhum fato concreto. Num
solilóquio, Bruto chega a admitir que não há provas de que César, renegando
toda a sua história, “tornar-se-á um tirano irracional e opressor”, como
escreveu Harold Bloom (Shakespeare: a invenção do humano). Eis um trecho da
fala de Bruto:
“Para ser franco com relação a César,
nunca soube que as paixões ou a razão nele tivessem qualquer preponderância.
Mas é coisa sabida em demasia que a humildade para a ambição nascente é boa
escada. Quem ascende por ela, olha-a de frente; mas, uma vez chegado bem no cimo,
volta-lhe o dorso, e as nuvens, só, contempla, desprezando os degraus por que
subira. César assim fará. Antes que o faça, será bom prevenir. E, como a luta
não poderá alegar o que ele é agora, argumentemos que se a sua essência vier a
ser aumentada, é bem possível que incorra em tais e tais extremidades.
Consideremo-lo ovo de serpente que, chocado, por sua natureza, se tornará
nocivo. Assim, matemo-lo, enquanto está na casca.”
Como destaca Bloom, “‘argumentemos’
quer dizer inventar uma ficção e, em seguida, considerá-la viável”. E assim, a
partir do que hoje poderia ser chamado de “teoria do domínio do fato”, Bruto e
seus sequazes julgaram e apunhalam César, não pelo que fez, mas por ser
“possível que incorra em tais e tais extremidades”...
Realmente, Verissimo, que no momento em
que escrevo se encontra hospitalizado em estado grave, foi feliz (mais uma
vez), ao lembrar, com ou sem ironia, os juízes e assassinos de César ao
referir-se aos julgadores da ação penal 470 (mensalão). Assim encerra o pronunciamento de Marco
Antônio aludido por Verissimo: “Bons amigos, queridos amigos, não quero
estimular a revolta de vocês. Aqueles que praticaram este ato são honrados.
Quais queixas e interesses particulares os levaram a fazer o que fizeram, não
sei. Mas são sábios e honrados e tenho certeza que apresentarão a vocês as suas
razões. Eu não vim para roubar seus corações. Eu não sou um bom orador como
Bruto. Sou um homem simples e direto, que amo os meus amigos”.
Desejemos que o novo presidente do STF
não volte o dorso para a sua humildade de origem e que não contemple apenas as
nuvens, desprezando os degraus que subira. Que não caiamos num vácuo moral, amém.
A íntegra da fala de Marco Antônio
sobre a morte de César na peça de Shakespeare, considerado por Umberto Eco, com
as catilinárias de Cícero, um dos discursos mais marcantes da história, pode
ser lida aqui:
Se preferir o prazer de ler a íntegra
de Júlio César, a peça está em domínio público, cedida pelo tradutor Nélson
Jahr Garcia, em arquivo .PDF, aqui:
Sinopse do filme roteirizado e dirigido pelo grande
cineasta Joseph L. Mankiewicz
Em Roma, (exatamente nos idos de março de 44 A.C., como
tinha sido previsto) César (Louis Calhern) é assassinado, pois os senadores
alegam que sua ambição o transformaria em um tirano. Mas Marco Antonio (Marlon
Brando) consegue, em um inflamado discurso, reverter a situação e os
conspiradores são obrigados a fugir. A partir de então dois exércitos são
formados, um comandado por Marco Antonio e Otávio (Douglass Watson) e o outro
por Cássio (John Gielgud) e Brutus (James Mason), sendo que este segundo exército
é numericamente inferior, mas os conspiradores preferem cometer suicídio a
serem capturados.
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