Somos todos César
Crônica sobre garoto mexicano, em meio à rebelião dos estudantes, inaugura nova coluna de “Outras Palavras”: agora sobre aqueles que não vemos
Texto e foto: Laís Modelli
Outras Palavras inaugura uma nova coluna: “Outras Pessoas/Outras Vidas”. Publicada semanalmente, trará textos dos jornalístas Laís Modelli e Rôney Rodrigues. Serão perfis de pessoas anônimas, marginalizadas, esquecidas. Rostos que sofrem os problemas sociais e que fazem parte das piores estatísticas publicadas nos jornais diários. Pessoas que têm perguntas – e respostas – embora nunca sejam perguntadas; que têm desejo e sonhos, que talvez nunca se realizem. Pessoas que existem, mas não enxergamos.
México. Está ali, ao lado do país mais influente do mundo. Tem uma das fronteiras mais problemáticas do cenário global, nos últimos cem anos. Mas quem são os seus? Qual o nome do atual presidente do país? Ignoramos a informação, não sabemos responder. Mas deveríamos – por questões de geografia, ética e direitos humanos.
Pois Enrique Peña Neto, atual presidente do México, é membro de uma agremiação política – o PRI, Partido Revolucionário Institucional – que governou o país por setenta anos seguidos, no século passado, e em 2013 voltou à Presidência. Enrique foi acusado, durante sua campanha eleitoral, de matar a própria mulher (ela era dependente química, em um país que tem como maior problema social o narcotráfico). Também é acusado de casar logo em seguida com uma atriz famosa e popular, que teria escolhido e encomendado em uma revista tipo “Caras”. Ainda estão nas contas de Peña e do PRI a acusação de ter produzido fraude nas eleições presidenciais, no ano passado. É aqui que começa nossa história: na fraude.
Setembro de 2012
Monumento da Revolução, Cidade do México. Avisto dezenas de barracas armadas embaixo do ponto turístico construído em homenagem a Emiliano Zapata e à Revolução Mexicana. Caminho a passos largos até elas, mas não me deixam entrar no acampamento. Jovens desconfiados me tomam pelo braço, me pegam a câmera e me fazem apagar a foto que descuidadosamente tirei de uma criança que corria entre as barracas.
Perguntam quem sou eu e o que quero ali. Eu não sei responder nem a primeira, nem a segunda pergunta. Pouco tempo depois, descubro que eles se chamam de #YoSoy132, um dos maiores movimentos sociais da atualidade do México. Nasceram contra a fraude eleitoral e a reeleição do partido de Enrique Peña Neto. Começou com estudantes e professores universitários, em julho de 2012, até que se popularizou e passou a atrair pessoas de outros segmentos da sociedade, como estrangeiros, ilegais, desempregados e o César.
César
8 anos. Não tem pai. Mãe desempregada. Ascendência indígena. Antes mesmo de falar o espanhol, já falava o dialeto de seus antepassados, porque esse aprendeu em casa, não precisou ir para escola. É baixinho, de olhos puxados, mirrado como a sua condição social.
Mas César tem o dom para os discursos esquerdistas a la Maiakovsky. Esse ímpeto discursivo o fazia tomar o microfone em todas as manifestações e assembleias. Aí era gigante. Enchia os pulmões de ar e berrava para a multidão. “México: alerta!”, “Coca-cola: asco! Enrique Peña Neto: asco!” Oito anos. Eu não tinha essa consciência aos dezoito. César ainda não sabe escrever um mundo de palavras em espanhol, mas já sabe o que significa asco político. César não tem mais casa, mora com a mãe no acampamento do #YoSoy132. César não frequenta a escola porque não conseguiu vaga. É normal isso no México, sempre ficam crianças de fora um ano ou outro. Naquele ano, foi a vez do César. O jeito era virar morador de barracas aos pés de Zapata. Para compensar a falta da sala de aula, os manifestantes do movimento se revezavam em aulas de gramática, matemática e até de artes cênicas para o menino mirrado. César se tornara o coração do acampamento.
Janeiro de 2013. Vem a verdade sobre César: a mãe do menino era uma espécie de espiã do partido de Peña Neto que se infiltrou no acampamento. Em troca de cestas básicas, ela deveria fornecer informações e nomes de organizadores do movimento.
Todos sentiram o nó na garganta quando descobriram o que levara César ao acampamento do #YoSoy132 – desde o mais revolucionário ao mais “maria-vai-com-as-outras”. O garoto ainda era novo pra compreender, mas o seu asco dito nos microfones da revolução vinha de quem comprava sua mãe, desempregada, alienada pelo Estado e largada pelo marido. César, por não ter o que comer, também não podia mais ter em que acreditar. Beija essa boca que te escarra, César. Afaga essa mão vil que te apedreja. É a mais perfeita vida que Augusto dos Anjos anunciava tempos atrás.
Esses são tempos de Césars. De milhões deles por ai, morando embaixo de monumentos de Zapata, embaixo do Minhocão, esquecidos no vão do Masp e largados embaixo das pontes, à mercê da sociedade. Somos todos pais de César, calados pela fome do básico. Somos todos Césars.
Nenhum comentário:
Postar um comentário