Sérgio Miranda: viva lenda e realidade
Dor muito forte é aquela que chega ou
permanece depois, às vezes no dia seguinte ou dias depois da pancada — alguns
costumam dizer. Zó, o Sérgio Miranda de Matos Brito, nos deixou na madrugada de
um dia que as pessoas costumam enfrentar meio desanimadas, às vezes detestando
até o crepúsculo do domingo — a fatídica véspera.
Foi uma noticia e uma sequencia de
cenas inimagináveis que marcaram nossa segunda-feira, 26 de novembro de 2012,
eu me vendo num avião rumo ao encontro da dor.
Uma noticia que o distanciamento
do tempo, depois de tudo, ao invés de atenuar, somente reproduz e multiplica a
inconformidade e impacto. É quando “cai a ficha”: não encontraremos mais o Zó,
nem “marcando o ponto” ou ao sabor do acaso. Aquele sorriso maroto, largo,
aberto, divertido, nas piores e nas melhores situações, e o mesmo começo de
conversa: “E aí?” As perguntas mais curiosas para se situar e o jeito
desprendido de enfrentar as tensões, os braços largados ao longo do torso.
Não vai dar mais para vê-lo descortinar
seus amplos e exaustivos exames da conjuntura, da estratégia e da tática, da
necessidade de seguir sempre além dos limites, de lançar o olhar mais largo ao
horizonte, de ampliar radicalizando e radicalizar ampliando, da linha ampla e
flexível a serviço do povo, dos trabalhadores, da classe operária, da
necessidade de assimilar a unidade na diversidade, de oferecer o bom combate ao
reformismo e à acomodação, de nunca aceitar a injustiça, de praticar a
indomável rebeldia com aquela insofismável naturalidade dos justos.
Nem vai dar mais para ouvi-lo a contar
prosaicas histórias da vida e da luta para todas as idades e gerações, de
brincar com as crianças como se fosse seu próprio mundo, ou encantar os adultos
com a “Lenda do boi do Maranhão”, aos mais castos ou formais; ou as poesias
fesceninas do proscênio barroco “boca do inferno”, Gregório de Mattos Guerra,
somente aos mais afeitos à arte ou afoitos nas estripulias da vida, as gozações
sempre prontas para aproximar as pessoas e o permanente cuidado em não ferir,
os porres homéricos nos quais versejando a gente pegava o sol com a mão em
inocentes farras, em diversos momentos a bordo de um bugre, no pós-ditadura...
Mesmo quem não conhecia sua intimidade,
podia perceber sua dimensão nas atitudes. Assisti, noutra longa madrugada,
“cobrindo” como repórter do jornal Movimento, ao seu julgamento, à revelia, em
1977, numa auditoria militar. Foi condenado pelos fascistas a três anos de
prisão mas (sonoras gargalhadas) nunca conseguiram colocar as mãos nele. Na
clandestinidade, familiares nossos o acoitavam da perseguição política
impressionados com seu faro para sentir a proximidade da repressão.
Tudo isso vivi depois que o Zé Auri,
chegando de Paris, nos rearticulou, naqueles novos capítulos da luta, na
segunda metade dos anos 1970. Pois em tudo isso somente agora, cada vez mais
embargado, posso escrever algumas primeiras linhas e somente quando Zó, muito
vivo na memória, segura a mão do amigo fiel. Como se guiasse o batuque dos
dedos no teclado, tão marcante sua presença, sua amizade, sua ressonância no
conteúdo da vivência e da política, de sua capacidade teórica e política, de
sua firmeza ideológica, do dirigente responsável e estimulante da ação
inteligente, criativa e revolucionária.
Nas lembranças e nas incontidas
lágrimas que pranteiam um amigo e um camarada com destacado lugar no panteão
dos inigualáveis.
Zó, de decênios de militância e de uma
década de clandestinidade, também na condição de parlamentar, honrou e orgulhou
o Brasil sem perder a marcante simplicidade e o afeto dos que o conheceram e
reconheceram. Um grande brasileiro de atitude única, sincero e adversário
antagônico da hipocrisia.
Agora Zó estava irreconhecível, ali
estirado, muito magro e sem aquele astral do gigante de feições generosas e
rosto vivaz. E quem via, sentenciava: “não é ele!”, “ele nunca foi assim”. E
foi sua presença viva que mais uma vez entrou em choque aberto pela existência,
a favor da vida.
Naquela noite da tão reprovada, por
vezes detestada segunda-feira, naquele trânsito incessante de muitas gerações,
nos diálogos funestos, mas também nas conversas animadas sobre um roteiro
marcante de incontáveis e inesquecíveis episódios, uma longa e dolorida
madrugada movimentou o Salão Nobre da Câmara dos Deputados. Mais uma vez estava
ali Sérgio Miranda de Matos Brito, agregando muitos que há muito não se viam,
alguns há décadas, outros que não esperavam mais se ver ou que nem se
imaginavam, entre si, subsistir.
Ali deitado, Zó contagiou mais uma vez
a inquietude que parecia agitar até o espelho d’água com suas inesgotáveis
histórias. Reunidas, todas fariam uma enciclopédia de muitos contos, poemas,
livros, mas sobretudo um uníssono e apreciado exemplo da mais elevada saga
humana.
Muitos de nós talvez, tantos quantos
foram seus amigos e camaradas, escreveremos como se guiasse o batuque dos
nossos dedos sobre o teclado, tão marcante foi sua presença, sua afeição, sua
ressonância no conteúdo e na essência deste épico pranto. De um modo e não de
outro Zó permanece nessas vidas, em nossas vidas, na perseguição à utopia dos
comuns que leva adiante os seus e os sonhos de todos que animam e reanimam a
capacidade de sonhar e agir.
Sérgio Miranda, presente!
Luiz Carlos Antero
Luiz Carlos Antero
Por um mundo no qual sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres (Rosa Luxemburgo)
Pergunta sempre a cada ideia: a quem serves? (Bertolt Brecht)
Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la (idem)
A luz do sol é o melhor dos desinfetantes (atribuída ao juiz norte-americano Louis Brandeis [1856 - 1841])
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