Victor
Mendonça Neiva[1]
MENSALÃO I: A
GAMBIARRA
Sendo o tema da
moda, o propalado “Julgamento do Mensalão”, pode nos levar à ilusão de que o
tema foi esgotado. Entretanto, o que vemos, na prática, é uma discussão apaixonada
entre quem o acha ótimo e quem o acha uma barbaridade. É o que se apreende do
cotejo entre a grande mídia, os blogs da internet e as redes sociais. Ao
acessar redes sociais, nos sentimos em um estádio lotado a presenciar duas
torcidas a entoar seus gritos pelo time vencedor.
Mas, se no
futebol às vezes nos vemos na contingência de defender a marcação de um pênalti
inexistente ou a ignorar uma tesoura voadora dentro da área, quando se trata de
atos políticos, e a decisão judicial é um deles, a defesa intransigente de um
dos lados pode nos levar a legitimar arbitrariedades, sejam por ação ou omissão.
Nestas situações, o melhor é se tranquilizar e ter a frieza como a melhor
amiga, para que possamos fazer uma avaliação crítica e independente do que está
acontecendo, formando uma opinião a respeito da existência ou não de uma
mudança de fato e se ela tende a se projetar no horizonte.
Buscando, na
medida do possível, seguir esta estratégia, a primeira conclusão que chego é
que o julgamento começou contraditório em seus próprios termos. De fato, tendo
como discussão primeira o desmembramento[2],
optou-se por modificar a jurisprudência pacífica até então (o que já havia sido
feito quando do recebimento da denúncia) para que todos os réus fossem julgados
pelo STF. Ocorre que, na mesma seção, verificando a existência de nulidade
processual em relação ao empresário Carlos Alberto Quaglia, se desmembrou o
feito apenas em relação a ele para assegurar que se adentrasse o julgamento de
mérito.
Para que o
leigo entenda, nulidade é um erro ou vício ocorrido na condução do processo que
pode anulá-lo desde o momento em que ocorreu, devendo recomeçar a partir daí.
Normalmente acontece quando se desrespeita o legítimo direito das partes de se
manifestar e de participar no processo, formulando as provas que entendesse
necessárias. No caso, não se realizou a tomada de depoimentos de testemunhas
indicadas pelo réu.
Assim,
logicamente, se decidido que o julgamento não deveria ser desmembrado e,
portanto, analisar a conduta de todos os réus em conjunto, seria imperioso que
o julgamento fosse paralisado até que corrigido o erro e ouvidas as
testemunhas. Como se viu, não foi o que se deu.
Logo, ao
entender que não se deveria desmembrar o processo para todos os réus e, ao
mesmo tempo, desmembrá-lo em relação ao réu em que verificada a nulidade, há
uma contradição inequívoca, o que podemos entender como uma “gambiarra” jurídica.
O que este fato
em si revela?
Em primeiro
lugar, a incapacidade operacional do Supremo de julgar ações penais. Sendo a
sua natureza eminentemente de corte recursal e de verificação de
constitucionalidade de atos normativos, não tem o traquejo para instrução
processual e formação de provas, o que revela certa ineficiência da corte e da
Justiça como um todo. É ela, fundamentalmente, a mais importante fonte de
crítica ao foro privilegiado.
Em segundo
lugar, que a pressão exercida pela grande mídia e por parte da população
mostrou-se decisiva para que o julgamento ocorresse neste momento e que fosse
espetacular. Ora, diante da realidade ineficiência operacional da corte de
apreciar ações penais (o mensalão é a ação penal de n. 470 na corte, enquanto,
por exemplo, os recursos extraordinários já passam de 700.000, os Habeas Corpus
de 110.000, as Reclamações de 30.000 e os Mandados de Injunção de 5.000), é
muito pouco provável que um julgamento desta magnitude ocorra novamente e,
exceto um fator estranho, ele não teria ocorrido desta maneira.
Em terceiro
lugar, parece que foi decisivo para o julgamento, a par motivos pessoais
inconfessáveis de ministros, o espírito de corpo do Judiciário em não chamar
pra si o papel de responsável pela impunidade no país.
De fato,
imaginemos que, em um caso de tamanha repercussão, após sete anos de
tramitação, os ministros tivessem que dar explicações para que o processo
tivesse que voltar para a instrução para ouvir testemunhas indicadas pelas
partes, sem previsão para julgamento? Ou mesmo assumindo que não têm condições
operacionais de julgar processos desta complexidade e que, por isso, o caso é
dividido em vários processos de acordo com o foro, privilegiado ou não, de seus
réus?
Assim, apenas
pela suscetibilidade da corte para a pressão exercida, o que, presumindo a
reputação ilibada e o notório conhecimento jurídico de nossos reconhecidos ao
menos pelos outros dois poderes da república, atribuo ao corporativismo e à
preocupação com a imagem da corte e do Judiciário, o Julgamento do Mensalão não
teria acontecido. Mais do que isso, do ponto de vista do Direito, seja pelo
dever de motivação das decisões judiciais, que impõe a coerência como um de
seus componentes essenciais, ou pela preocupação que uma corte deve ter com a
isonomia de suas decisões, não se deveria julgar nestas circunstâncias.
Por outro lado,
do ponto de vista político, não ignorar completamente a repercussão social de
um caso tão relevante para o país, procurando não comprometer a crença nesta
instituição fundamental em qualquer democracia não seria recomendável a um
julgador responsável?
Este é um
dilema crítico, que deixo em aberto, por não ter a sua resposta. Até porque já
vi casos em que a Justiça ignorou completamente a sociedade para proferir o seu
julgamento e posso dizer que não foi bom. Mas isto é tema que tratarei na
próxima.
MENSALÃO II: A
CONQUISTA
Quando ingressei
na faculdade em 1994 e comecei as minhas lições introdutórias, era repetido
reiteradamente que, estudando em Brasília, era inadmissível que não fosse
assistir às seções do Supremo. Colegas passavam horas a relatar os debates e as
artimanhas dos julgamentos naquela corte. Estudantes de todo o país faziam
excursões à Brasília para conhecê-lo. Enfim, o STF era, e certamente ainda é, o
grande tema dos estudantes da Universidade de Brasília.
Pois bem, e lá
fui eu, já atrasado, cumprir com a minha obrigação cívico acadêmica de assistir
a sessão do pleno de nossa mais alta corte. Levei minha irmã, à época
secundarista e hoje procuradora federal, eis que já ressabiado com as
pegadinhas que os veteranos faziam com os calouros, era melhor não ir sozinho.
Deparei-me com o julgamento de uma das ações penais em que o réu era o Collor.
Não era a primeira, que teve grande comoção, e, por isso, havia muitos espaços
livres na sala.
À medida que se
desenrolava o julgamento, passei a me imbuir da certeza de que iam pegá-lo. Era relatado com tamanho detalhamento
de provas as vantagens obtidas pelo réu e os benefícios da empreiteira que era
impossível no meu entendimento de garoto inocentá-lo. E eis, que veio a
surpresa: entendendo que não estava cabalmente provada a relação entre as
vantagens recebidas por aquele servidor público e o favorecimento da empresa,
não se poderia condenar por presunção. Improcedência da denúncia.
Saí de lá
profundamente decepcionado e, minha irmã, aos prantos. Neste dia descobri que o
juridiquês era um instrumento de pacificação do povo. De fato, se dito em
linguagem clara e coloquial aquilo que a tonelada de brocardos latinos e termos técnicos obscureciam, seguramente teríamos
a nossa queda da Bastilha.
Depois passei a
perceber que não era só a linguagem a ajudar a letargia do cidadão. Toda a
parafernalha de requisitos, desde o terno e grava ou a saia até os adereços dos
prédios do Judiciário, com os mármores, as estátuas de bronze e a indumentária
serviam para auxiliar a letargia do cidadão, estimulando um certo acanhamento e
timidez diante de tanto poder e autoridade a indicar um pretenso conhecimento
superior.
Por exemplo: o
propalado ato de ofício, meus senhores, nada mais é do que a exigência de um
“contrato de corrupção”. Ou seja, não bastava à acusação provar que o servidor
recebeu uma vantagem indevida e que quem entregou teve uma pretensão atendida
do órgão. Era necessária uma prova inequívoca da ligação entre ambos.
Assim, a
discussão que pela imprensa pareceu ser apenas da existência ou não de prova,
na verdade, era secundária à primeira, que ficava maliciosamente escondida: o
que era necessário provar. Obviamente, como estes acordos de vontades entre
corrupto e corruptor normalmente se dá a portas fechadas e com intermediários
obscuros (os chamados testa-de-ferro), inúmeros bandidos não puderam ser
apanhados pela Justiça. Graças a tal jurisprudência do ato de ofício.
O fato é que a
sociedade brasileira, passados cerca de 20 anos, amadureceu. Os meios de
comunicação e o acesso à informação se tornou mais livre da sociedade. Assim, o
julgamento que só poderia ser visto por quem fosse à seção ou tivesse a
disposição para ler os enfadonhos e enormes acórdãos, agora é acompanhado da
sala de casa. E mais, uma parte bem maior da população já tem condições de
melhor deglutir o indigesto vocabulário e entender, ao menos em parte, os fatos
em discussão.
Daí a evolução
naquilo que espero ser a morte da jurisprudência do ato de ofício e, mais do
que isso, vermos em um julgamento do Supremo contrário a toda a sua
jurisprudência, mas em favor da sociedade.
Já aconteceram
inúmeras vezes de o STF em um caso particular modificar o entendimento
reiterado em sua jurisprudência, mas, do que me recordo, eram todas em prejuízo
do cidadão ou da sociedade. Como exemplo cito a libertação do Paulo Maluf em
processo relatado por Carlos Vellozo, a soltura de Salvatore Cacciola, da
relatoria de Marco Aurélio e, mais recentemente, o espantoso habeas corpus de
Daniel Dantas relatado por Gilmar Mendes e a assustadora súmula vinculante das
algemas. Além disso, houve os casos cíveis, como o conhecimento da matéria
relativa aos expurgos inflacionários do FGTS, que reduziu sobremaneira o que o
governo devia aos cidadão, a greve dos petroleiros no governo FHC, a concessão
de auxílio-moradia por liminar pelo então Ministro Nelson Jobim e a própria
contribuição previdenciária de inativos.
Certamente, não
fosse o amadurecimento da cidadania de nossa ainda infante democracia (tem
apenas 24 anos se contada da Constituição de 1988), provavelmente não se veria
uma alteração de jurisprudência tão significativa para a nação.
A dispensa de
prova do ato de ofício é mais importante que a própria Lei da Ficha Limpa para
a sociedade, pois possibilitará que criminosos antes inatingíveis pelo sistema
judiciário, tenham a sua ficha sujada pela dispensa de uma exigência para a
condenação que, na maioria das vezes, é inviável.
Apesar disso, ao
contrário da Ficha Limpa, é cedo para dizer que esta evolução veio para ficar.
Como já vimos da história do STF, nem sempre a Justiça foi a sua aliada e,
utilizando o termo de um atual ministro da corte de quando Advogado Geral da
União, o que temos está mais para um “manicômio judiciário” que para um Poder
da República.
MENSALÃO III: O TERATOLÓGICO
TE-RA-TO-LÓ-GI-CO!
A primeira vez que tive contato com esta palavra, perdido no estudo de processo
civil, tive uma certeza e um espanto: só podia ser um palavrão e como é que
poderia ser usada em um processo?
Depois vi que
seu significado era muito pior. Teratológico é aquilo que nos faz lembrar que a
injustiça que tanto nos revolta é fato cotidiano, quase banal. É o absurdo ao
quadrado, a indignidade ao extremo, enfim, o que faz conhecer o máximo de
indignação que podemos suportar. Trata-se de um termo utilizado dentro do
juridiquês como a única alternativa para justificar o cabimento do mandado de
segurança contra ato judicial.
Já vi, no cotidiano forense, várias decisões teratológicas
que, apesar disso, jamais justificaram o cabimento daquele remédio extremo
contra arbitrariedades. Percebi então que não bastava a existência de uma
teratologia praticada por magistrado. Era necessário que, além dela, existisse
um juiz ou um órgão judicial capaz de reconhecê-la.
Ao tratar do
mensalão, todos os acusadores e boa parte da opinião pública o exaltaram com um
nível de excepcionalidade semelhante. Era “o maior escândalo de corrupção que
existiu na história do país”, “o mais atrevido esquema de corrupção” e assim
por diante.
Ao presenciar
algumas das condenações, entretanto, fiquei absolutamente pasmo, mais que isso,
embasbacado! Foram baseadas em regras de análise da prova que determinam que a
avaliação do conjunto probatório ocorra segundo o que “ordinariamente
acontece”.
E assim,
aplicando-se ao que foi considerado o máximo do extraordinário (perdoem-me o
pleonasmo vicioso), o que, segundo a maioria dos ministros do STF é o que
normalmente ocorre, foram condenadas pessoas sem qualquer prova.
Digo isto
porque o depoimento de um co-réu, inimigo declarado de um dos condenados
jamais, em nenhum outro processo que se tenha conhecimento, é tido como
“prova”. De fato, testemunhas são as pessoas desinteressadas que prestam
juramento. Os parentes, amigos, inimigos e demais interessados, quando muito,
são informantes e não servem, por si só, como prova.
Além disso, a
testemunha deve falar de fatos por ela presenciados e não de opiniões. O que
normalmente se dá em depoimentos, e até estagiários sabem disso, é que, se a
pessoa não presenciou o fato, dele não pode depor, ou seu depoimento não serve.
Neste caso, a
versão do co-réu prevaleceu à das verdadeiras testemunhas do fato, simplesmente
por uma avaliação de “verossimilhança”, mais atrelada à qualidade retórica do
informante que a aparência de verdade do que disse.
Como se não
bastasse, vimos serem inocentados os marqueteiros da campanha por, independente
do que ordinariamente acontece, não terem conhecimento da origem ilícita dos 11
milhões de reais que receberam pela campanha presidencial.
É isto mesmo:
sujeito, brasileiro, por um serviço prestado no Brasil, exige que o pagamento
seja feito na conta de uma off-shore em um paraíso fiscal e não supõe que os
recursos sequer fossem de caixa 2!
E eu pensando
cá com os meus botões: se os recursos fossem lícitos, necessariamente teriam
que estar na prestação de contas a ser feita perante o TSE. Como isto é feito?
Há precedente deste tipo de depósito aceito como algo regular em uma análise de
contas pelas cortes eleitorais? Isto, mais uma vez, “ordinariamente acontece”?
E assim, o que
se viu assemelhou-se mais ao restabelecimento da “oligarquia dos sofistas”, que
propriamente um julgamento. Enfim, subverteu-se as mais elementares regras da
democracia e dos direitos fundamentais, fazendo com que a nossa corte suprema
se prestasse ao linchamento sem provas e a absolvição com elas.
Ora, dentro do
que ordinariamente acontece, a onisciência e onipotência são poderes divinos. Na
prática, instituições, quando crescem, têm funções delegadas. Por exemplo, a
Casa Civil da Presidência da República é a responsável pelo controle
administrativo do governo, pela condução das políticas gerais, pela elaboração
das minutas de todas as normas e por todas as nomeações de um governo
gigantesco. Assim, a afirmação de conhecimento e controle do extraordinário de
relação de varejo entre partidos, o tal esquema de corrupção, não pode ser
presumido. Tem que ser provado. E não foi.
Ademais, é
evidente que os recursos são recebidos desta forma para elisão fiscal e,
portanto, não são declarados e, desta forma, dentro das regras de uma campanha
eleitoras, só podem ser feito com “recursos não contabilizados” e, portanto,
ilícitos. Como entender o desconhecimento desta origem para absolver nestas
circunstâncias.
Aprendemos,
desde muito cedo na faculdade, que democracia não é, necessariamente, o regime
da maioria, mas o regime político que reconhece a existência de direitos
fundamentais e tem no Estado não o destinatário da ação dos súditos, mas uma
organização política voltada ao atendimentos destes direitos dos cidadãos.
Daí que,
paulatinamente, no processo de amadurecimento da democracia, fortaleceu-se o
papel das cortes constitucionais, como órgãos necessários a impedir o
aviltamento destes direitos, principalmente em situações de crise. E isto se
deu, fundamentalmente pelo reconhecimento de que a maioria também pode oprimir.
Eis o porquê
de, em muitos casos, a decisão de uma corte prevalecer sobre a de órgãos
legitimados pelo voto. Também a justificativa para que os juízes destas cortes
não sejam sujeitos ao sufrágio, eis que os tornaria mais suscetíveis à opinião
pública, pois seriam dependentes do voto.
O que vimos,
entretanto, foi a completa subversão destes valores ontológicos de uma ordem
democrática. Isto é evidentemente te-ra-to-ló-gi-co!
Pois é, a
maioria oprimiu. O problema é que foi uma maioria que variou de seis a oito
pessoas. E, com isso, comecei a suspeitar que o máximo de indignação que
podemos suportar tenha como sentimento correspondente a repugnância visceral.
[1]
Advogado, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF.
[2]
Desmembramento é o que se entende pela separação do processo entre diferentes
órgãos da justiça de acordo com a competência em razão da pessoa, resguardando
ao Supremo o julgamento apenas daqueles réus que, nos termos da Constituição,
devem ser julgador pela corte.
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