quinta-feira, outubro 25, 2012

O MENSALÃO EM TRÊS ATOS



                                                                                                                             Victor Mendonça Neiva[1]


MENSALÃO I: A GAMBIARRA

Sendo o tema da moda, o propalado “Julgamento do Mensalão”, pode nos levar à ilusão de que o tema foi esgotado. Entretanto, o que vemos, na prática, é uma discussão apaixonada entre quem o acha ótimo e quem o acha uma barbaridade. É o que se apreende do cotejo entre a grande mídia, os blogs da internet e as redes sociais. Ao acessar redes sociais, nos sentimos em um estádio lotado a presenciar duas torcidas a entoar seus gritos pelo time vencedor.
Mas, se no futebol às vezes nos vemos na contingência de defender a marcação de um pênalti inexistente ou a ignorar uma tesoura voadora dentro da área, quando se trata de atos políticos, e a decisão judicial é um deles, a defesa intransigente de um dos lados pode nos levar a legitimar arbitrariedades, sejam por ação ou omissão. Nestas situações, o melhor é se tranquilizar e ter a frieza como a melhor amiga, para que possamos fazer uma avaliação crítica e independente do que está acontecendo, formando uma opinião a respeito da existência ou não de uma mudança de fato e se ela tende a se projetar no horizonte.
Buscando, na medida do possível, seguir esta estratégia, a primeira conclusão que chego é que o julgamento começou contraditório em seus próprios termos. De fato, tendo como discussão primeira o desmembramento[2], optou-se por modificar a jurisprudência pacífica até então (o que já havia sido feito quando do recebimento da denúncia) para que todos os réus fossem julgados pelo STF. Ocorre que, na mesma seção, verificando a existência de nulidade processual em relação ao empresário Carlos Alberto Quaglia, se desmembrou o feito apenas em relação a ele para assegurar que se adentrasse o julgamento de mérito.
Para que o leigo entenda, nulidade é um erro ou vício ocorrido na condução do processo que pode anulá-lo desde o momento em que ocorreu, devendo recomeçar a partir daí. Normalmente acontece quando se desrespeita o legítimo direito das partes de se manifestar e de participar no processo, formulando as provas que entendesse necessárias. No caso, não se realizou a tomada de depoimentos de testemunhas indicadas pelo réu.
Assim, logicamente, se decidido que o julgamento não deveria ser desmembrado e, portanto, analisar a conduta de todos os réus em conjunto, seria imperioso que o julgamento fosse paralisado até que corrigido o erro e ouvidas as testemunhas. Como se viu, não foi o que se deu.
Logo, ao entender que não se deveria desmembrar o processo para todos os réus e, ao mesmo tempo, desmembrá-lo em relação ao réu em que verificada a nulidade, há uma contradição inequívoca, o que podemos entender como uma “gambiarra” jurídica.
O que este fato em si revela?
Em primeiro lugar, a incapacidade operacional do Supremo de julgar ações penais. Sendo a sua natureza eminentemente de corte recursal e de verificação de constitucionalidade de atos normativos, não tem o traquejo para instrução processual e formação de provas, o que revela certa ineficiência da corte e da Justiça como um todo. É ela, fundamentalmente, a mais importante fonte de crítica ao foro privilegiado.
Em segundo lugar, que a pressão exercida pela grande mídia e por parte da população mostrou-se decisiva para que o julgamento ocorresse neste momento e que fosse espetacular. Ora, diante da realidade ineficiência operacional da corte de apreciar ações penais (o mensalão é a ação penal de n. 470 na corte, enquanto, por exemplo, os recursos extraordinários já passam de 700.000, os Habeas Corpus de 110.000, as Reclamações de 30.000 e os Mandados de Injunção de 5.000), é muito pouco provável que um julgamento desta magnitude ocorra novamente e, exceto um fator estranho, ele não teria ocorrido desta maneira.
Em terceiro lugar, parece que foi decisivo para o julgamento, a par motivos pessoais inconfessáveis de ministros, o espírito de corpo do Judiciário em não chamar pra si o papel de responsável pela impunidade no país.
De fato, imaginemos que, em um caso de tamanha repercussão, após sete anos de tramitação, os ministros tivessem que dar explicações para que o processo tivesse que voltar para a instrução para ouvir testemunhas indicadas pelas partes, sem previsão para julgamento? Ou mesmo assumindo que não têm condições operacionais de julgar processos desta complexidade e que, por isso, o caso é dividido em vários processos de acordo com o foro, privilegiado ou não, de seus réus?
Assim, apenas pela suscetibilidade da corte para a pressão exercida, o que, presumindo a reputação ilibada e o notório conhecimento jurídico de nossos reconhecidos ao menos pelos outros dois poderes da república, atribuo ao corporativismo e à preocupação com a imagem da corte e do Judiciário, o Julgamento do Mensalão não teria acontecido. Mais do que isso, do ponto de vista do Direito, seja pelo dever de motivação das decisões judiciais, que impõe a coerência como um de seus componentes essenciais, ou pela preocupação que uma corte deve ter com a isonomia de suas decisões, não se deveria julgar nestas circunstâncias.
Por outro lado, do ponto de vista político, não ignorar completamente a repercussão social de um caso tão relevante para o país, procurando não comprometer a crença nesta instituição fundamental em qualquer democracia não seria recomendável a um julgador responsável?
Este é um dilema crítico, que deixo em aberto, por não ter a sua resposta. Até porque já vi casos em que a Justiça ignorou completamente a sociedade para proferir o seu julgamento e posso dizer que não foi bom. Mas isto é tema que tratarei na próxima.


MENSALÃO II: A CONQUISTA

Quando ingressei na faculdade em 1994 e comecei as minhas lições introdutórias, era repetido reiteradamente que, estudando em Brasília, era inadmissível que não fosse assistir às seções do Supremo. Colegas passavam horas a relatar os debates e as artimanhas dos julgamentos naquela corte. Estudantes de todo o país faziam excursões à Brasília para conhecê-lo. Enfim, o STF era, e certamente ainda é, o grande tema dos estudantes da Universidade de Brasília.
Pois bem, e lá fui eu, já atrasado, cumprir com a minha obrigação cívico acadêmica de assistir a sessão do pleno de nossa mais alta corte. Levei minha irmã, à época secundarista e hoje procuradora federal, eis que já ressabiado com as pegadinhas que os veteranos faziam com os calouros, era melhor não ir sozinho. Deparei-me com o julgamento de uma das ações penais em que o réu era o Collor. Não era a primeira, que teve grande comoção, e, por isso, havia muitos espaços livres na sala.
À medida que se desenrolava o julgamento, passei a me imbuir da certeza  de que iam pegá-lo. Era relatado com tamanho detalhamento de provas as vantagens obtidas pelo réu e os benefícios da empreiteira que era impossível no meu entendimento de garoto inocentá-lo. E eis, que veio a surpresa: entendendo que não estava cabalmente provada a relação entre as vantagens recebidas por aquele servidor público e o favorecimento da empresa, não se poderia condenar por presunção. Improcedência da denúncia.
Saí de lá profundamente decepcionado e, minha irmã, aos prantos. Neste dia descobri que o juridiquês era um instrumento de pacificação do povo. De fato, se dito em linguagem clara e coloquial aquilo que a tonelada de brocardos latinos  e termos técnicos obscureciam, seguramente teríamos a nossa queda da Bastilha.
Depois passei a perceber que não era só a linguagem a ajudar a letargia do cidadão. Toda a parafernalha de requisitos, desde o terno e grava ou a saia até os adereços dos prédios do Judiciário, com os mármores, as estátuas de bronze e a indumentária serviam para auxiliar a letargia do cidadão, estimulando um certo acanhamento e timidez diante de tanto poder e autoridade a indicar um pretenso conhecimento superior.
Por exemplo: o propalado ato de ofício, meus senhores, nada mais é do que a exigência de um “contrato de corrupção”. Ou seja, não bastava à acusação provar que o servidor recebeu uma vantagem indevida e que quem entregou teve uma pretensão atendida do órgão. Era necessária uma prova inequívoca da ligação entre ambos.
Assim, a discussão que pela imprensa pareceu ser apenas da existência ou não de prova, na verdade, era secundária à primeira, que ficava maliciosamente escondida: o que era necessário provar. Obviamente, como estes acordos de vontades entre corrupto e corruptor normalmente se dá a portas fechadas e com intermediários obscuros (os chamados testa-de-ferro), inúmeros bandidos não puderam ser apanhados pela Justiça. Graças a tal jurisprudência do ato de ofício.
O fato é que a sociedade brasileira, passados cerca de 20 anos, amadureceu. Os meios de comunicação e o acesso à informação se tornou mais livre da sociedade. Assim, o julgamento que só poderia ser visto por quem fosse à seção ou tivesse a disposição para ler os enfadonhos e enormes acórdãos, agora é acompanhado da sala de casa. E mais, uma parte bem maior da população já tem condições de melhor deglutir o indigesto vocabulário e entender, ao menos em parte, os fatos em discussão.
Daí a evolução naquilo que espero ser a morte da jurisprudência do ato de ofício e, mais do que isso, vermos em um julgamento do Supremo contrário a toda a sua jurisprudência, mas em favor da sociedade.
Já aconteceram inúmeras vezes de o STF em um caso particular modificar o entendimento reiterado em sua jurisprudência, mas, do que me recordo, eram todas em prejuízo do cidadão ou da sociedade. Como exemplo cito a libertação do Paulo Maluf em processo relatado por Carlos Vellozo, a soltura de Salvatore Cacciola, da relatoria de Marco Aurélio e, mais recentemente, o espantoso habeas corpus de Daniel Dantas relatado por Gilmar Mendes e a assustadora súmula vinculante das algemas. Além disso, houve os casos cíveis, como o conhecimento da matéria relativa aos expurgos inflacionários do FGTS, que reduziu sobremaneira o que o governo devia aos cidadão, a greve dos petroleiros no governo FHC, a concessão de auxílio-moradia por liminar pelo então Ministro Nelson Jobim e a própria contribuição previdenciária de inativos.
Certamente, não fosse o amadurecimento da cidadania de nossa ainda infante democracia (tem apenas 24 anos se contada da Constituição de 1988), provavelmente não se veria uma alteração de jurisprudência tão significativa para a nação.
A dispensa de prova do ato de ofício é mais importante que a própria Lei da Ficha Limpa para a sociedade, pois possibilitará que criminosos antes inatingíveis pelo sistema judiciário, tenham a sua ficha sujada pela dispensa de uma exigência para a condenação que, na maioria das vezes, é inviável.
Apesar disso, ao contrário da Ficha Limpa, é cedo para dizer que esta evolução veio para ficar. Como já vimos da história do STF, nem sempre a Justiça foi a sua aliada e, utilizando o termo de um atual ministro da corte de quando Advogado Geral da União, o que temos está mais para um “manicômio judiciário” que para um Poder da República.


MENSALÃO III: O TERATOLÓGICO

TE-RA-TO-LÓ-GI-CO! A primeira vez que tive contato com esta palavra, perdido no estudo de processo civil, tive uma certeza e um espanto: só podia ser um palavrão e como é que poderia ser usada em um processo?
Depois vi que seu significado era muito pior. Teratológico é aquilo que nos faz lembrar que a injustiça que tanto nos revolta é fato cotidiano, quase banal. É o absurdo ao quadrado, a indignidade ao extremo, enfim, o que faz conhecer o máximo de indignação que podemos suportar. Trata-se de um termo utilizado dentro do juridiquês como a única alternativa para justificar o cabimento do mandado de segurança contra ato judicial.
Já vi, no cotidiano forense, várias decisões teratológicas que, apesar disso, jamais justificaram o cabimento daquele remédio extremo contra arbitrariedades. Percebi então que não bastava a existência de uma teratologia praticada por magistrado. Era necessário que, além dela, existisse um juiz ou um órgão judicial capaz de reconhecê-la.
Ao tratar do mensalão, todos os acusadores e boa parte da opinião pública o exaltaram com um nível de excepcionalidade semelhante. Era “o maior escândalo de corrupção que existiu na história do país”, “o mais atrevido esquema de corrupção” e assim por diante.
Ao presenciar algumas das condenações, entretanto, fiquei absolutamente pasmo, mais que isso, embasbacado! Foram baseadas em regras de análise da prova que determinam que a avaliação do conjunto probatório ocorra segundo o que “ordinariamente acontece”.
E assim, aplicando-se ao que foi considerado o máximo do extraordinário (perdoem-me o pleonasmo vicioso), o que, segundo a maioria dos ministros do STF é o que normalmente ocorre, foram condenadas pessoas sem qualquer prova.
Digo isto porque o depoimento de um co-réu, inimigo declarado de um dos condenados jamais, em nenhum outro processo que se tenha conhecimento, é tido como “prova”. De fato, testemunhas são as pessoas desinteressadas que prestam juramento. Os parentes, amigos, inimigos e demais interessados, quando muito, são informantes e não servem, por si só, como prova.
Além disso, a testemunha deve falar de fatos por ela presenciados e não de opiniões. O que normalmente se dá em depoimentos, e até estagiários sabem disso, é que, se a pessoa não presenciou o fato, dele não pode depor, ou seu depoimento não serve.
Neste caso, a versão do co-réu prevaleceu à das verdadeiras testemunhas do fato, simplesmente por uma avaliação de “verossimilhança”, mais atrelada à qualidade retórica do informante que a aparência de verdade do que disse.
Como se não bastasse, vimos serem inocentados os marqueteiros da campanha por, independente do que ordinariamente acontece, não terem conhecimento da origem ilícita dos 11 milhões de reais que receberam pela campanha presidencial.
É isto mesmo: sujeito, brasileiro, por um serviço prestado no Brasil, exige que o pagamento seja feito na conta de uma off-shore em um paraíso fiscal e não supõe que os recursos sequer fossem de caixa 2!
E eu pensando cá com os meus botões: se os recursos fossem lícitos, necessariamente teriam que estar na prestação de contas a ser feita perante o TSE. Como isto é feito? Há precedente deste tipo de depósito aceito como algo regular em uma análise de contas pelas cortes eleitorais? Isto, mais uma vez, “ordinariamente acontece”?
E assim, o que se viu assemelhou-se mais ao restabelecimento da “oligarquia dos sofistas”, que propriamente um julgamento. Enfim, subverteu-se as mais elementares regras da democracia e dos direitos fundamentais, fazendo com que a nossa corte suprema se prestasse ao linchamento sem provas e a absolvição com elas.
Ora, dentro do que ordinariamente acontece, a onisciência e onipotência são poderes divinos. Na prática, instituições, quando crescem, têm funções delegadas. Por exemplo, a Casa Civil da Presidência da República é a responsável pelo controle administrativo do governo, pela condução das políticas gerais, pela elaboração das minutas de todas as normas e por todas as nomeações de um governo gigantesco. Assim, a afirmação de conhecimento e controle do extraordinário de relação de varejo entre partidos, o tal esquema de corrupção, não pode ser presumido. Tem que ser provado. E não foi.
Ademais, é evidente que os recursos são recebidos desta forma para elisão fiscal e, portanto, não são declarados e, desta forma, dentro das regras de uma campanha eleitoras, só podem ser feito com “recursos não contabilizados” e, portanto, ilícitos. Como entender o desconhecimento desta origem para absolver nestas circunstâncias.
Aprendemos, desde muito cedo na faculdade, que democracia não é, necessariamente, o regime da maioria, mas o regime político que reconhece a existência de direitos fundamentais e tem no Estado não o destinatário da ação dos súditos, mas uma organização política voltada ao atendimentos destes direitos dos cidadãos.
Daí que, paulatinamente, no processo de amadurecimento da democracia, fortaleceu-se o papel das cortes constitucionais, como órgãos necessários a impedir o aviltamento destes direitos, principalmente em situações de crise. E isto se deu, fundamentalmente pelo reconhecimento de que a maioria também pode oprimir.
Eis o porquê de, em muitos casos, a decisão de uma corte prevalecer sobre a de órgãos legitimados pelo voto. Também a justificativa para que os juízes destas cortes não sejam sujeitos ao sufrágio, eis que os tornaria mais suscetíveis à opinião pública, pois seriam dependentes do voto.
O que vimos, entretanto, foi a completa subversão destes valores ontológicos de uma ordem democrática. Isto é evidentemente te-ra-to-ló-gi-co!
Pois é, a maioria oprimiu. O problema é que foi uma maioria que variou de seis a oito pessoas. E, com isso, comecei a suspeitar que o máximo de indignação que podemos suportar tenha como sentimento correspondente a repugnância visceral.



[1] Advogado, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF.
[2] Desmembramento é o que se entende pela separação do processo entre diferentes órgãos da justiça de acordo com a competência em razão da pessoa, resguardando ao Supremo o julgamento apenas daqueles réus que, nos termos da Constituição, devem ser julgador pela corte.

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