Frei Beto mostra a foto de Frei Tito, torturado a tal ponto que se matou!
‘A partir de d. Paulo mudou tudo’, diz Frei Betto
sobre apoio da Igreja ao golpe!
O religioso, um dos
principais nomes na luta contra a ditadura, conta que foi o arcebispo quem
levantou a bandeira em defesa dos direitos humanos após as denúncias de
torturas
Ricardo Galhardo - iG São
Paulo | 19/07/2012
08:00:07
No primeiro
momento, a Igreja Católica e outras organizações religiosas apoiaram o golpe
militar de 1964. Alguns religiosos, como o então cardeal de São Paulo d. Agnelo
Rossi, chegaram a encobrir torturas e outras atrocidades. Foi só com o passar
do tempo, o surgimento de denúncias rotineiras sobre desrespeitos aos direitos
humanos e a caracterização cada vez mais clara do regime como uma ditadura, que
a Igreja mudou de lado e passou a ser um dos pilares na defesa da democracia. A
opinião é do escritor Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, testemunha
e personagem desta história.
Durante a conversa com o iG na sala de
música do convento dos dominicanos, um oásis de árvores e passarinhos encravado
no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo, Frei Betto disse que a situação
mudou a partir da intervenção direta do papa Paulo VI, que substituiu d. Rossi
por d. Paulo Evaristo Arns. “A partir de d. Paulo mudou tudo”, afirmou
iG -
Em vários momentos a Igreja Católica e outras organizações religiosas ajudaram
no combate à ditadura militar. Havia uma articulação entre elas?
Frei
Betto – Na verdade, quando houve o golpe em 1964 a Igreja Católica,
através da CNBB, apoiou agradecendo a Nossa Senhora Aparecida ter livrado o
Brasil da ameaça comunista. Ocorre que setores da Igreja, em especial a JUC
(Juventude Universitária Católica) da qual eu era dirigente e a JEC (Juventude
Estudantil Católica), que faziam parte da Ação Católica, estavam muito
identificados com a esquerda e contra a ditadura. Eles já haviam inclusive dado
origem a um dos grupos de esquerda duramente reprimidos, a Ação Popular, da
qual Betinho (o sociólogo Herbert Souza, morto em 1997) foi um dos fundadores. Então
a repressão, que no início ficou muito confortável com o apoio da CNBB, passou
a achar que a Igreja fazia jogo duplo. Porque ela fazia um discurso de apoio
aos militares, mas na prática estava contra. Para vocês terem uma ideia, nós da
JUC e JEC morávamos juntos no Rio de Janeiro e fomos presos no dia 6 de junho
de 1964, isso tudo eu descrevo no livro “Batismo de Sangue”. E porque fomos
presos? Havíamos feito algum movimento contra a ditadura? Não. Fomos presos na
chamada noite do arrastão da Ação Popular. Para o Cenimar (órgão de
inteligência da Marinha), Ação Católica e Ação Popular eram a mesma coisa.
Ficamos 15 dias presos. Não houve processo nem nada.
iG –
Como a Igreja reagiu a isso?
FB - Aí começou
aquilo que aos olhos da ditadura era jogo duplo e com atitudes de bispos
progressistas cada vez mais críticos à repressão na medida em que ela vai
crescendo. A partir daí muitos bispos, com destaque para a atuação de d. Helder
Câmara, começam a defender as vítimas e vai se alargando o fosso entre a Igreja
Católica e a ditadura. Isso também acontecia em menor escala com outras
Igrejas. E o caldo entornou com a prisão nossa, dos dominicanos, em 1969, e o
assassinato do padre Henrique Pereira Neto, da pastoral da juventude do Recife.
Ele foi torturado, assassinado e jogado no campus universitário. E nós
torturados, Frei Tito massacrado, depois veio a morrer em consequência disso.
iG –
O apoio continuou quando surgiram as denúncias de tortura?
FB - Tínhamos
algumas figuras de proeminência na Igreja Católica como o cardeal Vicente
Scherer no Rio Grande do Sul e o cardeal Agnelo Rossi aqui em São Paulo do lado
da ditadura, dizendo que não havia tortura. Tanto que quando o Rossi foi nos
visitar no Dops ele nos viu todos quebrados, nós dissemos que havíamos sido
torturados, o delegado disse “não eminência, eles caíram da escada” e o Rossi
saiu do Dops e disse à imprensa que não houve tortura.
iG –
Houve participação do Vaticano na mudança de postura da Igreja brasileira?
FB - Roma nos
apoiou na figura do o cardeal Agostinho Casarolli, segundo na hierarquia do
Vaticano. Portanto, o papa Paulo VI nos apoiou. O governo geral dos dominicanos
em Roma também nos apoiou e quando o papa ficou sabendo do episódio no Dops
decidiu tirar o d. Rossi de São Paulo com aquele esquema que a Igreja usa de
promover para remover. O papa pediu para o cardeal Rossi ir a Roma e então
aconteceu um episódio folclórico. O Rossi ficou hospedado no mesmo lugar onde
sempre ficam os brasileiros, chamado Pio Brasileiro, e celebrou uma missa
dizendo no sermão que no Brasil não havia tortura, que tudo era uma campanha
comunista. Em seguida, depois do sermão, na oração dos fiéis, os seminaristas
brasileiros começaram a dizer “rezemos por fulano, assassinado pela polícia nas
ruas de São Paulo segundo o ‘Observatório Romano’, rezemos pela sicrana que foi
muito torturada segundo a ‘Rádio Vaticana’”, etc. Eles acabaram com o Rossi,
pois as fontes eram os próprios veículos de imprensa do Vaticano. Quando Rossi
voltou para São Paulo na chegada ao aeroporto foi comunicado por jornalistas
sobre sua demissão e que d. Paulo Evaristo Arns, que era auxiliar dele, era o
novo arcebispo. E a partir de d. Paulo mudou tudo.
iG -
As tensões diminuíram?
FB - Não. Se
agravaram porque d. Paulo bateu de frente com a ditadura todo o tempo. Foi ele
quem fundou o grupo Clamor, a Comissão de Justiça e Paz, o Brasil Nunca Mais.
Uma série de instrumentos que ele foi criando para defesa dos direitos humanos.
E assim a Igreja foi se afastando até o ponto de emitir notas contra a
ditadura.
iG –
A preocupação com os direitos humanos ficou acima das ideologias políticas?
FB - Tinha um
padre da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade) que nos visitava e não acreditava na existência de tortura até o
dia em que viu o Frei Tito chegar do DOI-Codi todo arrebentado. O padre entrou
em parafuso porque era um homem honesto.
iG –
A ditadura tentou impedir a ação da Igreja?
FB - Proibiram que
estrangeiros nos visitassem porque nós, os dominicanos, éramos a caixa de
ressonância mais forte na Europa sobre os arbítrios da ditadura. Nós tínhamos a
Igreja por trás. Ninguém na esquerda tinha algo parecido. Tanto que nos
separaram. Ficamos dois anos como presos políticos e os dois últimos anos como
presos comuns. Fomos parar no Carandiru e depois em Presidente Venceslau.
Depois da proibição aos estrangeiros o bispo de Lins foi nos visitar no
presídio Tiradentes com o cardeal holandês Bernardus Alfrink, um dos mais
progressistas da Igreja. Sabendo da proibição aos estrangeiros o bispo falou
que o cardeal era seu sacristão. O cardeal então nos entrevistou, anotou tudo,
na mesma noite embarcou para a Holanda e ao chegar a Amsterdam toda a imprensa
já estava convocada para uma coletiva na qual foi tudo denunciado. E assim a
posição das igrejas foi mudando até chegar ao ápice com o livro Tortura Nunca
Mais (com mais de mil relatos colhidos clandestinamente entre 1979 e 1985 com
apoio de d. Paulo, o rabino judeu Henry Sobel e o pastor protestante Jamie
Wright).
iG –
O cerco maior foi em torno dos dominicanos?
FB – Não só. Temos
o caso dos padres franceses, a tentativa de assassinar d. Pedro Casaldáliga e
aí eles mataram um outro padre jesuíta lá em Rio Bonito. Havia uma festa, dom
Pedro estava com roupas normais e o padre vestido de clérigo. Acharam que o
padre era o bispo e o mataram. Teve muitos outros episódios que foram tão
fortes quanto o nosso.
iG –
Havia algum respeito dos militares pelo fato de vocês serem da Igreja?
FB – Não. De jeito
nenhum. Ao contrário. Por que o Frei Tito morreu em função da tortura? Nossa
prisão foi igual à dos demais. A repercussão foi muito grande. Saiu na imprensa
do mundo todo. O que aconteceu foi que quando a ditadura se deu conta da
repercussão ela percebeu que não tinha sustança para justificar a violência com
que fomos presos e decidiu que nós tínhamos que assinar um documento assumindo
que havíamos participado de operações armadas. O primeiro a ser retirado do presídio
Tiradentes para assinar o documento foi o Frei Tito. Ele não assinou, foi três
dias torturado dia e noite até o ponto em que ou ele cedia ou morria. Então ele
cortou o pulso com uma lata e com isso impediu que os demais passassem pela
mesma coisa. Mas a partir daí ele ficou todo quebrado psicologicamente. Isso
teve uma repercussão imensa. A revista Look deu ao Frei Tito o prêmio de melhor
matéria do ano de 1971.
iG –
O papel da Igreja na luta contra a ditadura no Brasil estava dentro do contexto
da América Latina?
FB – Sim. As
histórias se repetem em alguns países. Mas na Argentina, por exemplo, foi o
contrário. Lá a Igreja apoiou oficialmente a ditadura. Embora padres e bispos
tenham ido contra, a conferência episcopal apoiou a ditadura até o fim ao ponto
de nomear capelães que participaram de sessões de tortura e dos voos da morte.
Mas em geral a Igreja da América Latina foi contra as ditaduras.
iG –
A Igreja ajudava a conscientizar os fiéis sobre as arbitrariedades do regime?
FB – No primeiro
momento, a Igreja foi totalmente a favor da ditadura. Chegaram a permitir a
vinda do padre Patrick Peyton, americano, que era agente da CIA e promoveu
aquelas marchas da família com Deus pela liberdade usando a imagem de Nossa
Senhora Aparecida. Depois a Igreja foi recuando e se tornando crítica. Aqui na
nossa igreja, por exemplo, a missa aos domingos lotava porque o sermão feito
pelo Frei Chico era sempre crítico à ditadura. Ele tinha o cuidado de
mimeografar para distribuir na saída. Tinha gente até na calçada de uma igreja
em que cabem 800 pessoas sentadas. Não era por fé. Ali era um espaço onde se
respirava liberdade. Enquanto isso ocorria um outro fenômeno que eram as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) crescendo por baixo, sem chamar atenção da
repressão. E elas são a sementeira de todo movimento social que veio depois.
Hoje é difícil encontrar um político de extração popular que não tenha origem
nas CEBs. O Lula é uma exceção.
Colaborou Gisele Silva, iG São Paulo
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